Blog “Dependência
e Co-dependência Química”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA E A DEPENDÊNCIA QUÍMICA:
INTERFACES E EVOLUÇÃO
Autoria:
1 - Elisângela Maria Machado
Pratta. Universidade Camilo Castelo Branco (UCCB).
2 - Manoel Antonio dos Santos.
Universidade de São Paulo (USP).
RESUMO
O uso de drogas atualmente é considerado um grave e
complexo problema de saúde pública. Falar sobre drogadição é discutir o
processo saúde/doença, considerando-se os modelos que contribuem para a
compreensão do fenômeno no momento atual e das estratégias de intervenção
estabelecidas. Discutir a dependência química hoje exige uma reflexão sobre
como a droga foi encarada ao longo da história, tendo em vista as questões de
saúde/doença e os paradigmas hegemônicos em cada momento. Este estudo visa: a)
mostrar as bases teórico-conceituais de três eixos (saúde, doença e dependência
química) e suas interseções; b) propiciar uma reflexão crítica sobre a questão
da promoção da saúde frente à dependência de drogas, de acordo com o modelo
biopsicossocial presente na atualidade. Esse modelo considera o ser humano
integral, dotado de subjetividade, de saberes e fazeres próprios, ativo no
processo saúde/doença, ressaltando a necessidade de rompimento com o modelo
cartesiano ainda predominante na saúde.
INTRODUÇÃO
A dependência química na atualidade corresponde a um
fenômeno amplamente divulgado e discutido, uma vez que o uso abusivo de
substâncias psicoativas tornou-se um grave problema social e de saúde pública
em nossa realidade. Entretanto, falar sobre o uso de drogas, particularmente
sobre a dependência química, traz à tona questões relacionadas diretamente ao
campo da saúde, o que implica na necessidade de realizar uma reflexão sobre
esse fenômeno no âmbito das concepções sobre saúde e doença, vigentes ao longo
da história do homem, bem como no momento atual. Isso porque temas como saúde,
doença e drogas sempre estiveram presentes ao longo da história da humanidade,
embora cada período apresente uma maneira particular de encarar e lidar com
esses fenômenos, de acordo com os conhecimentos e interesses de cada época.
No que diz respeito ao uso de substâncias psicoativas, ao
contrário do que se pensa, esse não é um evento novo no repertório humano
(Toscano Jr., 2001), e sim uma prática milenar e universal, não sendo,
portanto, um fenômeno exclusivo da época em que vivemos. Pode-se dizer, então,
que a história da dependência de drogas se confunde com a própria história da
humanidade (Carranza & Pedrão, 2005), ou seja, o consumo de drogas sempre
existiu ao longo dos tempos, desde as épocas mais antigas e em todas as culturas
e religiões, com finalidades específicas. Isso porque, o homem sempre buscou,
através dos tempos, maneiras de aumentar o seu prazer e diminuir o seu
sofrimento (Martins & Corrêa, 2004).
Entretanto, é importante pontuar que os hábitos e costumes
de cada sociedade é que direcionavam o uso de drogas em cerimônias coletivas,
rituais e festas, sendo que, geralmente, esse consumo estava restrito a
pequenos grupos, fato esse que apresentou grande alteração no momento atual,
pois hoje se verifica o uso dessas substâncias em qualquer circunstância e por
pessoas de diferentes grupos e realidades.
Por outro lado, em relação à saúde e à doença, estas também
despertaram a atenção do homem desde a Antiguidade, uma vez que estão
diretamente relacionadas a questões que fazem parte da condição humana, como é
o caso da reflexão sobre a vida e a morte, o prazer e a dor, sofrimento e o
alívio, trazendo à tona, a inerente fragilidade do homem.
Analisando a evolução histórica do ser humano é possível
verificar que cada época apresenta uma maneira particular de lidar com esses
elementos, ou seja, com a saúde e a doença. No caso das doenças, é possível
notar que as concepções que se apresentaram ao longo da história caminharam do
sobrenatural para o natural e, consequentemente, para o social (Ornellas,
1999). Ao longo dos tempos nota-se uma mudança de foco no que se refere à
compreensão e valorização destes eixos (saúde - doença), partindo de um
paradigma que tem por finalidade a manutenção da saúde até chegar a um novo
paradigma que apresenta como centro a questão da doença. Esse último permaneceu
durante muito tempo como modelo adequado para compreender questões referentes à
saúde e à doença, e hoje passa por um período de crise.
Assim, tomando-se por base o referencial acima mencionado,
o presente estudo visa mostrar os alicerces teóricos-conceituais de três eixos
— saúde, doença e uso de substâncias psicoativas — e suas interseções, de
forma a ativar e manter uma reflexão crítica das ideias e valores relacionados
aos mesmos. Para tanto, três objetivos específicos permeiam esta reflexão. São
eles: (a) discutir as mudanças nas concepções sobre saúde e doença e suas
implicações no que se refere ao uso de substâncias psicoativas, considerando-se
os principais momentos históricos; (b) refletir sobre as influências do modelo
biomédico, hegemônico na área da saúde, na discussão e no atendimento
dispensado ao usuário de drogas a partir do século XX; (c) abordar a questão da
dependência química e do tratamento da mesma, tendo por base o modelo de
produção social da saúde, enfatizando a importância da promoção e da prevenção
nesse contexto.
O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA E O USO DE DROGAS: UMA VISÃO
HISTÓRICA
Discutir questões ligadas aos conceitos, à compreensão e
à elaboração de modos de encarar a saúde, a doença e os cuidados, ao longo do
contexto histórico, coloca em evidência “a questão da evolução histórica da
[própria] prática médica como instituição que detém a legitimidade hegemônica
do domínio desse cuidado e dos saberes relativos à doença e à saúde” (Ornellas,
1999, p. 20). Assim, seguindo os trâmites da história em seus principais
momentos, é necessário começar a falar sobre saúde e doença retomando reflexões
e conhecimentos que foram produzidos na Antiguidade.
Segundo Sevalho (1993), as primeiras representações de
saúde e doença estavam ligadas a uma questão mágica, como no caso das
concepções dos antigos povos da Mesopotâmia, uma vez que para eles as doenças
eram provocadas por influências de entidades sobrenaturais, com as quais o ser
humano não podia competir. Posteriormente, a doença passou a ser explicada no
âmbito das crenças religiosas, sendo, portanto, determinação dos deuses. Essa
visão começou a mudar a partir dos conhecimentos desenvolvidos pelos egípcios,
os quais evidenciaram uma naturalização das doenças, aliada às crenças
sobrenaturais, religiosas e mágicas que os mesmos possuíam.
Os gregos, um povo considerado avançado para seu momento
histórico e que apresentava uma característica particular, a preocupação em
compreender a natureza do homem, produziram um rico conhecimento mitológico e
filosófico, os quais embasaram as explicações sobre saúde e doença nessa época.
Assim, em um primeiro momento, as explicações para as doenças entre os gregos
tinham uma fundamentação religiosa.
Nesse período, existia no ideário popular a concepção de
que o sobrenatural (no caso, os deuses) era responsável pela manifestação das
doenças, ou seja, existia a ideia de sacralização das doenças, uma vez que o
homem tinha por costume curvar-se às divindades e se submeter aos mais diversos
tipos de sacrifícios com a finalidade de livrar-se de alguma enfermidade, do
castigo e das impurezas (Toscano Jr., 2001).
Essa visão sofreu mudanças a partir das ideias de Hipócrates,
o qual foi o primeiro a formular um conceito de causas naturais para os eventos
presentes em nosso mundo (Sevalho, 1993). Segundo sua concepção, o homem era
constituído de quatro humores corporais sendo estes o sangue, a bílis amarela,
a bílis negra e a fleuma, os quais eram oriundos de quatro qualidades
específicas da natureza: calor, frio, umidade e aridez. Dentro dessa visão, a
saúde resultaria da harmonia, do equilíbrio entre esses quatro humores e, por
outro lado, a doença teria origem no excesso ou na escassez de um deles ou na
falta de mistura dos mesmos no organismo, sendo a cura ligada à busca do
equilíbrio (Cairus & Ribeiro, 2005). Assim, a medicina de Hipócrates
apresentava uma preocupação clara com a doença individual e com a forma de
curá-la, bem como com a manutenção da saúde.
Além disso, a emergência da escola hipocrática, considerando
a doença e a cura como resultados de processos naturais (MacRae, 2001; Toscano
Jr., 2001), levou a nova medicina a receitar o pharmakón (palavra que
significa remédio ou veneno) para o tratamento das enfermidades em busca da
cura (Toscano Jr., 2001).
Assim, para os gregos, que empregavam vários tipos de
drogas, a ação dessas era vista de maneira relativa, pois uma determinada
substância poderia ser utilizada, simultaneamente, como remédio ou veneno,
dependendo de sua dosagem. Isso porque era essa dosagem que determinava o
efeito curativo de uma determinada substância utilizada e o envenenamento
provocado pela mesma (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001).
Os romanos, que sofreram grandes influências dos gregos,
também compartilhavam dessa posição, encarando as drogas como basicamente
neutras, isto é, seus efeitos, sejam estes positivos ou negativos, dependiam da
dosagem e da maneira de uso das mesmas (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001).
No final da Antiguidade e durante toda a Idade Média
(século V ao XV) retoma-se a concepção de doença como algo sagrado, provocado
pelo sobrenatural, embora a mesma também continuasse sendo encarada como a
manifestação de alterações globais do organismo na sua relação com o meio
físico e social (Queiroz, 1986). Pode-se dizer, assim, que até esse momento, de
uma forma ou de outra, a maioria dos terapeutas levava em consideração a
interação corpo e alma, buscando tratar seus pacientes a partir do meio social
e espiritual no qual os mesmos se encontravam (Capra, 1982).
Nesse período, os hospitais criados no Ocidente eram
caracterizados como casas de assistências e abrigos, bem como funcionavam como
instrumentos de exclusão ao isolar os doentes do restante da população
(Sevalho, 1993).
Em relação ao uso de drogas, durante a Idade Média, é
necessário pontuar que a Igreja Católica, que possuía um grande poder nesse
período, tanto em termos religiosos quanto em termos econômicos e sociais,
passou a condenar o uso das plantas consideradas como “diabólicas”, as quais
eram vistas como sinônimo de feitiçaria (Toscano Jr., 2001). Essas plantas
passaram a ser estigmatizadas, gerando perseguições tão intensas que, no
século X, o emprego de drogas para fins terapêuticos tornou-se sinônimo de
heresia, uma vez que o sofrimento era concebido como uma maneira de aproximação
a Deus (MacRae, 2001).
É importante esclarecer que durante a Idade Média a única
droga permitida pelo Cristianismo era o álcool, mais precisamente o vinho, o
qual até hoje é considerado um elemento relevante dentro dessa religião, uma
vez que simboliza o sangue de Jesus Cristo (Toscano Jr., 2001). O uso de
qualquer outro tipo de droga, como unguentos e poções, era condenado pela
Igreja Católica e os indivíduos que os utilizavam eram punidos com torturas e
morte pelos tribunais da Inquisição (MacRae, 2001).
Apesar dessas restrições e das perseguições constantes
realizadas pela Igreja Católica, a Idade Média conseguiu acumular “todo um
saber herbário, alquímico e secreto, bem como de uma prática popular sobre as
plantas” (Toscano Jr., 2001).
No final da Idade Média, a Europa é assolada pela peste
negra — peste bubônica —, que provocou uma grande mudança na realidade da
época, evidenciando o medo do sofrimento e da morte. Nesse período, o
pensamento da morte tornou-se evidente. Os princípios da medicina galênica não
conseguiram dar conta dessa nova vivência, o que levou Sydenhan a apoiar-se nas
obras dos empiristas, “especialmente Bacon e Locke, e [iniciar] um novo modo de
conceber a doença, através de dois elementos importantes: o empirismo clínico,
que se apóia na observação, e uma nova classificação das doenças, agudas e
crônicas, ainda hoje utilizada” (Ornellas, 1999, p. 20).
A partir desse momento, essa nova forma de conceber a
doença, associada a um conjunto de outros fatores da época, levou à emergência
de um novo olhar sobre a questão da saúde e doença e da relação entre as
mesmas, bem como no que diz respeito ao uso de drogas.
Desta forma, com o Renascimento — final do século XV ao
início do XVI —, que levou à queda gradativa do poder e da influência exercidos
pela Igreja Católica em todos os âmbitos da sociedade, é possível notar grandes
transformações na realidade da época. Por exemplo, a possibilidade de um
contato mais íntimo com as culturas orientais, em que antigos conhecimentos
farmacológicos haviam sobrevivido melhor, possibilitou uma retomada gradual do
uso de drogas (MacRae, 2001).
Por outro lado, nesse período ocorreu um grande avanço
científico, evidenciando-se a necessidade de laicização do saber, o que levou
ao nascimento da ciência moderna. A ciência, que durante toda a Idade Média,
sofreu um processo de estagnação, retomou aqui seu papel, com uma nova roupagem.
A ciência moderna passou a exigir a sistematização do conhecimento, seguindo
para isso normas e regras específicas para a produção do mesmo, o que fez com
que a observação, a descrição e a classificação delimitassem o paradigma da
mesma. Com isso, as ideias da experiência e da intervenção incorporaram-se ao
pensamento moderno (Ornellas, 1999).
Frente a esse contexto, a partir do século XVII, a
evolução da medicina acompanhou de perto o desenvolvimento ocorrido na
ciência, principalmente na biologia, a qual apresentava uma concepção
mecanicista da vida, concepção esta que passou a dominar, consequentemente, a
atuação dos médicos em relação à saúde e à doença (Capra, 1982).
Tomando como base esse paradigma, Descartes (século XVII)
desenvolveu o conceito de dualismo mente e corpo, passando a encarar o corpo
como uma máquina, o qual poderia ser explorado e estudado (paradigma
mecanicista). Essa visão quebrou a concepção predominante na Idade Média, do
corpo como algo sagrado e inviolável, por ser considerado o “depósito” da alma.
Consequentemente, essa visão criou uma concepção de doença como um mau
funcionamento das “peças” da máquina humana, o qual poderia ser reparado por
meio de uma intervenção específica da medicina, desde que esta desenvolvesse
conhecimentos pontuais das leis que regem o funcionamento dessa máquina
(Ornellas, 1999; Sevalho, 1993), e uma concepção de morte como a paralisação
total da mesma (Capra, 1982).
A função do médico, a partir de então, seria a de
intervir “física ou quimicamente, para consertar o defeito no funcionamento de
um mecanismo enguiçado” (Capra, 1982, p. 116), ou seja, como um bom mecânico,
devendo, portanto, reparar o que não estava adequado.
Nota-se, assim, uma mudança epistemológica na medicina,
a qual passou de uma arte de curar os indivíduos, portanto, uma prática, para
uma disciplina das doenças (o saber componente da prática é organizado e
sistematizado segundo determinados padrões) (Ornellas, 1999). Além disso, a
divisão entre corpo e mente, proposta por Descartes, levou os médicos a
direcionarem sua atenção para a máquina corporal, para o biológico, deixando de
lado aspectos psicológicos, sociais e ambientais da doença (Capra, 1982), o
que demonstra uma visão reducionista da doença. Teve início, assim, o modelo
biomédico, que se constituiu no alicerce conceitual da moderna medicina
científica, permanecendo na área da saúde aproximadamente quatro séculos após
Descartes.
No âmbito dessa nova concepção, ganha força a interpretação
do sinal físico, ou seja, do sintoma, sendo desenvolvido todo um sistema de
classificação das doenças de uma forma ordenada e sistematizada. A doença
passou a ser identificada a partir de uma realidade concreta e começou a ser
localizada no corpo, sendo evidenciada a partir da lesão anatômica. Buscava-se,
portanto, a relação entre lesão e sintomas dentro de uma perspectiva
anatomopatológica (Capra, 1982; Ornellas, 1999). Procurava-se, no doente ou no
laboratório, evidências que apontassem para uma patologia específica, ocorrendo
uma objetivação do corpo, o qual se tornou interessante por ser a sede das
doenças, e por outro lado, uma objetivação das próprias doenças, que se
transformaram em entidades patológicas a serem exploradas e compreendidas
(Ornellas, 1999).
Dentro desse contexto, a teoria da medicina assumiu a
concepção biológica da doença, passando a ser a teoria das doenças. A saúde, a
partir desse foco, passou a ser encarada como a ausência de doenças e o
processo de cura, como a eliminação dos sintomas evidenciados. Assim, o
médico, em sua atuação, era dotado de cada vez mais poder e controle sobre a
questão da doença e o seu tratamento, uma vez que passou a ter um saber e uma
prática socialmente valorizados.
Segundo Queiroz (1986) a partir da Revolução Industrial
(século XVIII), identificou-se uma “ruptura fundamental entre saúde e medicina,
com uma hegemonia flagrante desta última. Esta ruptura veio acompanhada da
[cisão] entre corpo e mente, eu e outro, pessoa e contexto, relações econômicas
e comunitárias dentro de um mundo em intenso processo de burocratização e
desencanto” (p.311). Destaca-se, ainda, que nas discussões sobre essa questão,
os graves problemas sociais do início do capitalismo industrial (jornada de
trabalho, urbanização, pobreza etc) em nenhum momento eram relacionados aos
problemas de saúde vivenciados na época (Sevalho, 1993).
No que diz respeito ao uso de drogas, no decorrer do
século XVIII, ocorreu uma diminuição na perseguição aos indivíduos considerados
hereges, fato que propiciou uma volta do uso médico e lúdico das drogas
(MacRae, 2001), ou seja, os próprios avanços científicos começaram a apontar a
necessidade de se explorar a questão medicamentosa quando se discute a questão
da doença dentro dos parâmetros em voga.
No início do século XIX desenvolveu-se a filosofia positiva,
a qual teve um impacto direto no que diz respeito ao método científico ao
ressaltar que todo e qualquer fenômeno deve ser explicado de uma forma
objetiva, experimental. Nesse sentido, segundo Ornellas (1999), todo
conhecimento produzido deve ser submetido ao que o Positivismo denominava de
princípio da neutralidade do sujeito. Esse princípio levou a uma nova concepção
de saúde e doença, uma vez que a medicina incorporou o conceito de função,
desenvolvendo, a partir desse, a visão de saúde como um processo.
Também no início desse mesmo século, cientistas conseguiram
isolar os princípios psicoativos de inúmeras plantas, passando a produzir
determinados fármacos como a morfina, a codeína, a cafeína, a cocaína, os
barbitúricos entre outros (MacRae, 2001; Toscano Jr., 2001). MacRae acrescenta,
ainda, que foi desenvolvido também nesse período, o uso anestésico do éter, do
clorofórmio e do óxido nitroso.
Destaca-se, ainda, que no século XIX houve o surgimento
da Psiquiatria, a qual foi considerada como um ramo secundário no âmbito da
medicina. A Psiquiatria incorporou o modelo biomédico vigente, procurando
discutir a questão dos problemas mentais a partir da descoberta de causas
orgânicas, ou seja, da busca da lesão, no caso, da lesão cerebral (Capra,
1982). O tratamento oferecido, na primeira metade do século XX, era advindo
desse modelo com ênfase no biológico.
Como a Psiquiatria seguiu a visão positivista predominante
na época, a mesma contribuiu para encobrir valores e poderes presentes nesse
cenário, como o caso da exclusão e morte social, uma vez que o paciente era
retirado do convívio social e encarcerado, perdendo muitas vezes seus vínculos
e sua própria identidade. Houve uma eclosão de hospitais psiquiátricos nesse
período. Os mesmos atendiam os mais diversos tipos de problemática relacionados
ao campo da saúde mental ou de pessoas que deveriam ser retiradas do convívio
social, segundo os interesses vigentes na época (mendigos, leprosos,
tuberculosos, portadores de sífilis, usuários de drogas etc).
Assim, a partir do século XIX a moderna medicina
científica passou a apresentar um grande avanço, que teve início a partir dos
grandes progressos efetuados na biologia. Dentre esses, pode-se mencionar o
rápido desenvolvimento na compreensão dos processos fisiológicos, levando
médicos e biólogos a se preocuparem com entidades cada vez menores, como por
exemplo, aquelas de interesse da biologia celular e da teoria microbiana da
doença (Capra, 1982). Esses conhecimentos deram à medicina um status diferenciado,
conferindo-lhe um poder específico para controlar as doenças e uma visão
individualista em relação ao objeto da saúde, ou seja, o foco de interesse
passou a ser cada vez mais o indivíduo e não a população (Queiroz, 1986).
Segundo Capra (1982), os grandes avanços da biologia
durante o século XIX foram acompanhados pela grande evolução na tecnologia
médica. Por outro lado, os conhecimentos produzidos no século XIX foram
aplicados de maneira diferenciada no século XX, gerando o desenvolvimento de
uma série de medicamentos e vacinas para o combate de doenças infecciosas, e
descobertas importantes como a penicilina em 1928 e a produção de medicamentos
psicoativos a partir da década de 50.
Esse desenvolvimento tecnológico e científico embasado no
modo de produção capitalista vigente no final do século XIX pode ser caracterizado
como um dos pontos que contribuíram para a tendência à especialização médica,
que teve seu apogeu no século XX. Nesse século, a visão reducionista permaneceu
na ciência biomédica, atingindo direta ou indiretamente todas as profissões da
área de saúde e orientando a formação e atuação das mesmas.
SAÚDE E DOENÇA NO SÉCULO XX: MUDANÇA DE PARADIGMAS
No século XX, falar sobre saúde e doença era tomar como
referencial o modelo biomédico. Isso porque o biologismo e o mecanicismo
predominantes no modelo biomédico, bem como a acentuada especialização e
tecnificação existentes, apresentaram impactos diretos no que diz respeito à
compreensão do processo saúde-doença e à prática realizada junto ao paciente.
Nesse contexto, a concepção reducionista de doença resume
a mesma ao aspecto biológico, deixando de considerar outros elementos
relevantes que podem interferir na mesma; a especialização, por sua vez, leva a
uma fragmentação do corpo, no qual cada parte deve ser cuidada de acordo com um
conjunto de saberes de domínio de especialistas. Esses aspectos apresentaram
implicações diretas na atuação do profissional com o paciente, o qual deixou de
ser encarado pelo profissional de saúde em sua totalidade, sendo apenas
sinônimo de um sintoma que apresenta ligação com uma doença específica. A
doença, então, passou a ser o foco de interesse do profissional, como se fosse,
segundo Backes, Lunardi e Lunardi Fiho (2006), desconectada do ser que a abriga
e no qual a mesma se desenvolve.
Desta forma, a doença enquanto foco de interesse, passou
a ser dotada de objetividade, cuja causa era orgânica. Assim, o processo de
adoecer estava reduzido ao biológico (visão reducionista), enquanto que a saúde
era diretamente associada ao conhecimento disponível sobre a doença, ou seja,
saúde era igual à ausência de doenças.
Essa relação estabelecida entre saúde e doença orientou
toda a produção de conhecimentos e a prática médica nesse período,
particularmente no que diz respeito ao tratamento oferecido ao paciente, além
de estar coerente e reforçar o modelo produtivo e econômico da época. Esse
contexto de certa forma levou a uma desumanização do homem na sociedade, não
coincidindo diretamente, segundo Queiroz (1986), com as necessidades reais de
saúde de uma população. Essa desumanização apareceu na sociedade, bem como nas
práticas relacionadas ao processo saúde/doença.
Assim, as concepções vigentes sobre saúde e doença
ofereceram um aparato que justificava e, de certa forma, impunha a necessidade
de apagar a subjetividade existente no relacionamento entre profissional de
saúde e paciente, evidenciando a racionalização, o que desvitalizava o próprio
tratamento.
Esses aspectos ficam claros quando se coloca em pauta a
questão da drogadição. O uso de álcool, por exemplo, vem desde a pré-história
até a atualidade. Porém, o mesmo somente começou a aparecer na literatura como
uma condição clínica, a partir dos séculos XVIII e XIX. Um dos motivos para
isso diz respeito à urbanização decorrente da Revolução Industrial, a qual
possibilitou que os médicos observassem mais os pacientes com consumo excessivo
de álcool, produzindo os primeiros textos referentes aos problemas de saúde
advindos do uso de bebidas alcoólicas.
Assim, pode-se dizer que a droga, como qualquer outro
elemento presente na sociedade, segue a evolução das culturas, ou seja, os
padrões, a frequência de utilização e os tipos de drogas consumidos mudam de
uma época para outra de acordo com as condições sócio-culturais existentes. O
que diferencia o uso das drogas no passado e o uso atual, é que este deixou de
ser um elemento de integração, um fator de coesão social e emocional da população,
passando a constituir-se num elemento de doença social, de desintegração
(Bucher, 1992). Isso passou a ocorrer principalmente a partir da segunda
metade do século XX, tendo contribuído diretamente para a desintegração do
tecido social e para o aniquilamento da subjetividade em um mundo profundamente
alienado.
Como a sociedade cada vez mais “coisifica” o homem,
encarando-o como uma máquina, desumanizando-o, acaba deixando de lado valores
humanos e afetivos importantes. Assim, “a drogadição não é mais do que uma das
consequências da alienação histórico-social, política e econômica, através da
qual se manifesta a dramática dissociação em que vivemos” (Kalina & cols.,
1999, p. 88). Ela é um sintoma da crise que atravessamos, decorrentes de uma
gama de fatores incluídos na dimensão familiar, social e individual (Kalina
& cols., 1999), bem como das rápidas e consistentes mudanças no modo de
organização das sociedades industrializadas (Toscano Jr., 2001). Essas
transformações levaram a um modo de vida racional, materialista e normatizador,
no qual o uso de drogas assumiu a forma de evasão, de contestação e/ou
transgressão.
Além disso, no que diz respeito ao tratamento dos usuários
de drogas, é necessário ressaltar que o mesmo tinha por base, no final do século
XIX e primeira metade do século XX, o modelo biomédico, estando diretamente
ligado à assistência psiquiátrica. Os indivíduos que apresentassem problemas
com álcool ou outras drogas eram encaminhados para instituições psiquiátricas
com a finalidade primordial de retirá-los do convívio social e promover o
abandono do uso, utilizando, para tanto, as mesmas técnicas empregadas com
outros internos.
Sendo assim, segundo Ferreira e Luis (2004), a
assistência ao uso de drogas, vinculada à assistência psiquiátrica, traz
consigo a questão da violação dos direitos humanos, além do problema da má
qualidade dos serviços prestados aos usuários, pois tem como base o modelo
hospitalocêntrico.
Entretanto, apesar da predominância do modelo biomédico
em todas as áreas da saúde, ao longo do século XX algumas contribuições foram
significativas para gerar uma nova reflexão sobre a questão da saúde em si.
Segundo Rezende (1986), a Organização Mundial da Saúde (OMS) propôs, em sua
Carta Magna de 7 de abril de 1948, um conceito de saúde diferenciado, o qual
constituiu um passo importante na compreensão desse fenômeno, apesar das
restrições e controvérsias que o mesmo apresentava e ainda apresenta.
Para a OMS, saúde corresponde a um estado de completo bem
estar físico, mental e social, e não apenas a mera ausência de moléstia ou
doenças. Esse conceito, apesar de ser um pouco mais abrangente, torna-se,
segundo alguns críticos, utópico e muitas vezes inatingível. “A utopia
sustenta-se no termo bem-estar, definido como o estado de perfeita satisfação
física ou moral. Aqui, o perfeito escapa por meio das possibilidades e
imperfeições humanas, inviabilizando a conquista plena da satisfação” (Rosa,
Cavicchioli & Bretãs, 2005, p. 579).
Dessa forma, os aspectos acima relatados, abordando a
questão da prática médica, a definição de saúde proposta pela OMS, associados a
outros fatores, como mudanças demográficas e epidemiológicas, excessiva
medicalização, desproporção crescente entre custo (como investimentos em
hospitais, serviços, equipamentos etc) e eficácia (melhoria real na qualidade
de vida da população), inacessibilidade do serviço, incorporação tecnológica
descontrolada, urbanização, além de falhas desse modelo em explicar de uma
forma abrangente os conceitos de saúde e doença, levaram ao questionamento do
modelo biomédico como algo prioritário e imutável no contexto de saúde, a
partir da segunda metade do século XX.
Isso porque, a partir desses fatores, percebeu-se que
falar sobre saúde não é apenas contrapô-la à questão da doença, uma vez que
saúde é algo mais amplo e complexo, que não depende única e exclusivamente de
uma questão biológica. Quando se discute o binômio saúde/doença, é importante
que esses fenômenos sejam encarados como processos, como algo dinâmico que se
manifesta em qualquer ambiente sob a presença de diversos fatores inerentes à
própria condição humana.
Portanto, tornou-se inegável a relação que existe entre
os fenômenos saúde/doença e os fatores psicológicos, sociais, políticos,
econômicos e ambientais, uma vez que condições inadequadas do meio exercem
influência direta na possibilidade de um indivíduo manter a saúde (Rosa,
Cavicchioli & Brêtas, 2005). Assim, o processo saúde/doença está diretamente
relacionado à própria complexidade e singularidade do viver do ser humano,
sendo determinado, portanto, não por intervenção médica, mas sim por
comportamentos, alimentação, pela natureza do meio ambiente (Capra, 1982).
Surge, assim, a necessidade de se adotar uma perspectiva
abrangente e dinâmica, levando à compreensão do processo saúde/doença como
sendo um fenômeno histórico e multideterminado. Propõe-se, consequentemente o
modelo biopsicossocial, o qual traz a ideia de integração, considerando saúde
uma produção social, ou seja, como algo que tem relação com o biológico, mas
que depende de uma série de outros determinantes sociais que estão implicados
na vida de cada ser humano, como cultura, lazer, transporte, alimentação,
educação, trabalho, saneamento básico entre outros. Esses determinantes são
coerentes com uma discussão sobre melhoria na qualidade de vida, encarando a
própria saúde como expressão dessa qualidade (Mendes, 1996).
A saúde passou a ser encarada como um momento, no
processo saúde/doença, em permanente transformação (Mendes, 1996), sendo um
fenômeno multidimensional. Tornou-se importante uma compreensão holística do
processo saúde/doença. Esse novo paradigma teve implicações diretas nas
reflexões efetuadas sobre o binômio saúde/doença, bem como na prática exercida
pelo profissional de saúde.
Dentro dessa nova visão, o profissional precisou rever o
seu posicionamento frente ao paciente, passando a desenvolver uma maior
sensibilidade frente ao sofrimento do outro. Além disso, segundo Caprara
(2003), o paciente passou a não ser mais encarado apenas como um objeto para a
intervenção médica, e sim como um sujeito ativo, integral, autêntico, com
necessidades e valores, que vive, reflete e transforma o encontro clínico
juntamente com o médico. Isso porque, segundo Ayres (2001), nesse encontro
estão presentes duas subjetividades, o que implica em relação, em
intersubjetividade, em mudança, em construção. Assim, sem desconsiderar a
relevância da prática médica, entender o processo saúde/doença na atualidade
exige a consideração de questões subjetivas, ou seja, a subjetividade volta à
cena (Queiroz, 2003).
A QUESTÃO DA
DEPENDÊNCIA QUÍMICA NO MODELO PSICOSSOCIAL DE SAÚDE
O consumo de substâncias psicoativas cresceu assustadoramente
a partir da segunda metade do século XX, configurando-se nas últimas décadas
desse século como um fenômeno de massa e como uma questão de saúde pública.
Sendo assim, em função da complexidade desse fenômeno na atualidade, a
dependência química é um problema que vem recebendo crescente atenção,
mobilizando tanto o sistema de saúde (Aguilar & Pillon, 2005; Canoletti
& Soares, 2005; Martins & Corrêa, 2004) quanto a sociedade de uma forma
geral. Além disso, tal questão está ganhando crescente visibilidade, uma vez
que discussões sobre a temática estão presentes em diversos meios de
comunicação e no âmbito de várias instituições (Marinho, 2005).
Portanto, a dependência química é algo atual para se discutir,
uma vez que somente a partir da segunda metade do século passado o conceito de
dependência deixou de ser enfocado como um desvio de caráter, ou apenas como um
conjunto de sintomas, para ganhar contornos de transtorno mental com
características específicas (Ribeiro, 2004).
Além disso, a abordagem exigida para a dependência química
é coerente com o modelo psicossocial de saúde em foco na atualidade. Isso
porque, tratar a questão do uso abusivo de substâncias psicoativas e a questão
da possível dependência que pode emergir em alguns casos, implica discutir não
só as questões orgânicas e psicológicas envolvidas, mas também os aspectos
sociais, políticos, econômicos, legais e culturais inerentes a esse fenômeno,
além das consequências físicas, psíquicas e sociais da mesma (Occhini &
Teixeira, 2006). Portanto, o fenômeno da drogadição é complexo e multifatorial
(Cartana, Santos, Fenili & Spricigo, 2004; Scivoletto, & Morihisa,
2001).
A compreensão desses aspectos é fundamental para se
pensar na questão do tratamento e do cuidado, principalmente no que se refere à
eficácia dos mesmos, pois o conhecimento produzido sobre o fenômeno da
drogadição não pode estar desvinculado do contexto mais amplo no qual são
produzidas as representações que sustentam e organizam a vida social,
conferindo sentido às ações humanas.
Em linhas gerais, a dependência de drogas é mundialmente
classificada entre os transtornos psiquiátricos, sendo considerada como uma
doença crônica que acompanha o indivíduo por toda a sua vida; porém, a mesma
pode ser tratada e controlada, reduzindo-se os sintomas, alternando-se, muitas
vezes, períodos de controle dos mesmos e de retorno da sintomatologia (Aguilar
& Pillon, 2005; Leite, 2000).
A OMS (2001) destaca ainda, que a dependência química
deve ser tratada simultaneamente como uma doença médica crônica e como um
problema social. Pode ser caracterizada como um estado mental e, muitas vezes,
físico que resulta da interação entre um organismo vivo e uma droga, gerando
uma compulsão por tomar a substância e experimentar seu efeito psíquico e, às
vezes, evitar o desconforto provocado por sua ausência. Não basta, portanto,
identificar e tratar os sintomas, mas sim, identificar as consequências e os motivos
que levaram à mesma, pensando o indivíduo em sua totalidade, para que se possa
oferecer outros referenciais e subsídios que gerem mudanças de comportamento em
relação à questão da droga.
Além da necessidade de buscar constantemente a droga, a
dependência causa mudanças acentuadas na interação do indivíduo com seus
familiares, afetando suas relações sociais e até mesmo profissionais. Segundo o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV, publicado
pela Associação Psiquiátrica Americana (2000), a característica primordial da dependência
de substâncias corresponde à presença de um conjunto de sintomas cognitivos,
comportamentais e fisiológicos, que evidencia que o indivíduo continua a
utilizar uma determinada substância, apesar dos problemas significativos
relacionados à mesma — tanto em termos de saúde quanto pessoais e sociais.
Sendo assim, existe um padrão de auto-administração repetida, o qual geralmente
resulta em tolerância, abstinência e comportamento compulsivo de consumo da
droga.
Silveira Filho (1995) acrescenta ainda, que para esses
indivíduos a droga passou a exercer um papel central na suas vidas, na medida
em que, por meio do prazer, ela preenche lacunas importantes, tornando-se
indispensável para o funcionamento psíquico dos mesmos.
O diagnóstico de uma dependência química exige a
avaliação de diversos aspectos, uma vez que os padrões de consumo de drogas na
atualidade são diversificados, sendo a dependência o último estágio. Além
disso, o tratamento da drogadição é algo prolongado. Entretanto, romper o ciclo
de dependência é algo muito difícil e delicado, pois os indivíduos que se
tornam dependentes vivenciam um sofrimento físico e psíquico intensos, tendo
sua vida afetada, bem como suas famílias, amigos e a comunidade de uma forma
geral.
Atualmente existem diversos profissionais implicados no
atendimento à dependência química, porém, o Brasil não possui uma legislação
definindo o papel de cada profissional no que diz respeito ao tratamento da
mesma (Ribeiro, 2004). Além disso, os profissionais que lidam com essa questão
hoje não possuem uma formação particular sobre o tema, uma vez que os cursos de
graduação, muitas vezes, não apresentam opções nesse sentido (Ochini &
Teixeira, 2006).
Portanto, discutir e cuidar da dependência química na
atualidade é encará-la dentro do modelo biopsicossocial de saúde, considerando
o paciente em sua totalidade, encarando-o como um ser ativo no processo
saúde/doença. Assim, segundo Leite (2000) o tratamento da dependência química
deve abranger o indivíduo, bem como o impacto e as consequências do consumo
sobre as diversas áreas da vida do mesmo.
PROMOÇÃO E PREVENÇÃO NA DEPENDÊNCIA QUÍMICA: UMA
REALIDADE DE ACORDO COM O NOVO PARADIGMA DE SAÚDE
A dependência química, como um grave problema de saúde
pública, necessita de atenção especial. Portanto, a área de saúde tem muito a
realizar no que diz respeito ao uso de drogas e à promoção de saúde (Gelbcke
& Padilha, 2004). Assim, trabalhar essa questão na nossa realidade exige um
conjunto de ações específicas que envolvam melhorias tanto no tratamento em si,
no caso da dependência já instalada, quanto em termos de promoção e prevenção
ao uso de drogas, de acordo com o modelo biopsicossocial de saúde, o qual
apresenta uma concepção holística do ser humano.
Dentro desses parâmetros, considerando-se as características
e os fatores relacionados ao uso de drogas na atualidade, a condução de um
programa terapêutico para o indivíduo dependente exige uma avaliação
individual, uma vez que não existe um modelo que seja adequado para todos os pacientes.
Atualmente, diversos tipos de tratamento estão sendo implantados para o
trabalho com a dependência química, como por exemplo, o tratamento médico, o
comportamental, o psicoterápico, o psiquiátrico ou o da ajuda mútua. Esses
tipos de tratamentos implicam em intervenções terapêuticas específicas, a
saber: desintoxicação (considerado apenas o primeiro passo), farmacoterapia,
psicoterapias (individual, em grupo e com os familiares), terapias (ocupacional
e cognitivo-comportamental), além dos grupos de ajuda mútua (Macieira, 2000).
É necessário pontuar que o atendimento a dependentes
químicos envolve dois aspectos centrais: primeiro, a desintoxicação com a
finalidade de retirada da droga e seus efeitos, e segundo, a manutenção, ou
seja, a reorganização da vida do indivíduo sem o uso da droga (Macieira, 2000).
Estudos apontam que, ainda hoje, observam-se baixos índices de sucesso no
tratamento da drogadição, pois diversos fatores podem contribuir para a não
adesão ao tratamento, o abandono ou, até mesmo, para o uso de substâncias
psicoativas durante o mesmo (Aguilar & Pillon, 2005).
Entretanto, segundo Ferreira e Luis (2004), é de suma
importância destacar que a realidade brasileira nunca teve uma política
específica de saúde, em nível nacional, a respeito da questão das drogas, o que
começou a mudar a partir de 1988 quando foram definidos os requisitos para a
criação dos Centros Regionais de Referência em Prevenção e Tratamento ao uso
abusivo de drogas, sejam estas lícitas ou ilícitas.
Com a Declaração de Caracas, em 1990, vinculou-se a
atenção psiquiátrica à atenção primária em saúde. Com a reforma psiquiátrica,
foram estabelecidas novas diretrizes para a assistência em saúde mental,
definindo as normas a serem seguidas para a implantação dos chamados
Núcleos/Centros de Atenção Psicossocial (NAPS/CAPS). Assim, segundo Ferreira e
Luis (2004), em um primeiro momento, os casos de intoxicação/abstinência em
relação ao uso de drogas eram encaminhados para os mesmos, porém estes não
atendiam todas as necessidades dos usuários.
A partir de 2002, em função dessa realidade e do aumento
significativo do uso de substâncias psicoativas e de suas consequências
associadas, o Ministério da Saúde instituiu o Programa Nacional de Atenção
Integrada ao usuário de Álcool e outras Drogas, demonstrando uma vontade
política direcionada à criação de serviços específicos para usuários e
dependentes químicos, considerando-se as particularidades dessa problemática, o
que não foi e ainda não está sendo fácil para implantar e sustentar (Ferreira
& Luis 2004).
Pode-se dizer, então, que a forma de encarar a dependência
química, e trabalhar com a mesma, sofreu alterações, principalmente no final do
século XX, buscando-se uma abordagem mais ampla e coerente do usuário ou do
dependente químico, uma vez que, até então, a dependência estava diretamente
relacionada à assistência psiquiátrica.
A necessidade de encarar a questão da dependência química
como uma realidade diferenciada e que necessita de acompanhamento - não sendo,
portanto, uma questão apenas de moral ou de caráter do indivíduo -, traz à tona
a importância de se discutir ações de promoção e de prevenção ao uso de drogas,
com a finalidade de reduzir esse fenômeno em nossa realidade.
Atualmente, em
função da expansão do consumo de substâncias psicoativas e dos problemas a ele
associados, muito se tem falado a respeito da prevenção, estratégia considerada
de suma importância para se trabalhar o fenômeno da drogadição. Alguns autores
(e.g., Marinho, 2005), entretanto, pontuam que muitas vezes, a questão do
consumo fica envolvida em significações marginais que acabam gerando e
reforçando preconceitos e segregação em relação ao usuário, ao invés de
propiciar uma sensibilização para a mudança de comportamento.
Assim, a realidade vivenciada mostra a necessidade de se
trabalhar em um nível anterior, ou seja, na promoção da saúde visando, segundo
Gelbcker e Padilha (2004), a questão de estilos de vida e de educação para a
saúde, a qual pode ser encarada como uma estratégia política e educacional
adotada por muitos governos com o propósito de garantir a equidade. Segundo
esses autores, a promoção da saúde envolve aspectos como capacitar, educar,
buscar a paz, respeitar os direitos humanos, justiça social, equidade no
atendimento. Dessa maneira, promovendo a saúde pode-se reduzir o fenômeno das
drogas na nossa realidade, uma vez que promover a saúde é uma postura que está
de acordo com o novo modelo de saúde, o qual considera o indivíduo na sua
totalidade.
Refletindo sobre as características da promoção da saúde,
pode-se dizer que as estratégias utilizadas devem visar a transformação das
situações de desigualdade, além de instrumentalizar o indivíduo com
informações, levando-o a se sentir parte importante do contexto em que vive,
dando condições e capacitando-o para que ele tenha uma vida saudável. Esses
elementos são fundamentais para que o mesmo tenha melhores condições de avaliar
e discernir aspectos relacionados à questão da droga, podendo evitar o seu uso.
Para que isso aconteça efetivamente, é necessário o envolvimento
de diversos grupos na sociedade, principalmente a família, uma vez que esta
apresenta um papel crucial no processo de desenvolvimento de seus membros,
constituindo-se como o primeiro agente educativo/preventivo. Por meio da
família a criança vai aprender condutas, hábitos, valores, observando as
atitudes dos pais frente à vida e aos problemas inerentes ao cotidiano
(Carranza & Pedrão, 2005).
Além disso, a família necessita ter condições básicas de
sobrevivência para garantir o desenvolvimento integral de seus membros. Isso
tornaria possível maximizar os fatores de proteção ao uso de drogas presentes
na família e minimizar a influência dos fatores de risco desse ambiente,
permitindo ao indivíduo desenvolver um rol de habilidades para lidar com
situações de pressão, de medo e de perda no seu cotidiano. É claro que o
desenvolvimento dessas habilidades não depende única e exclusivamente da
família, porém a mesma tem um papel preventivo relevante, bem como um papel
significativo na adesão ao tratamento quando existe uma dependência já
diagnosticada.
Entretanto, vale ressaltar que muitas estratégias
adotadas, em termos de promoção e de prevenção em relação ao uso de drogas,
apresentam uma influência do método cartesiano. A proposta da promoção da saúde
é ampla e visa a integridade do indivíduo. Porém, muitos projetos educacionais
na área de saúde partem do pressuposto que se pode educar para a saúde, fato
que levou a veiculação do ideal de que a assimilação do saber instituído leva à
aquisição de novos comportamentos, tornando a educação normativa. Ou seja,
alguém, além do próprio indivíduo, conhece o que é melhor para ele e para todos
que estão ao seu redor. Isso corresponde a uma herança clara do método cartesiano
que ainda prevalece nas áreas de saúde e de educação desde o surgimento da
modernidade (Gazzinelli, Gazzinelli, Reis & Penna, 2005).
Para que essa visão se altere, e realmente ocorra a
promoção da saúde, há a necessidade de se romper com o padrão cientificista,
buscando pensar a educação para saúde em termos mais abrangentes, que
considerem o indivíduo em sua totalidade, o qual possui uma subjetividade, bem
como valores e saberes diferentes daqueles com os quais os profissionais de
saúde e educação lidam. Há, portanto, uma necessidade de aprendizagem dos dois
lados (Gazzinelli, Gazzinelli, Reis & Penna, 2005).
Assim, no caso da dependência química, é necessário
considerar e buscar entender qual o significado na mesma na vida de cada
indivíduo, uma vez que as histórias de vida são diferenciadas. Além disso, cada
um possui formas específicas de representar o processo de saúde e doença, o que
implica em olhar para a subjetividade inerente nessa situação, vislumbrando,
também, os sentimentos, desejos, as necessidades desse indivíduo, o qual
necessita ser encarado como um ser ativo no processo saúde/doença, exigência do
novo paradigma de saúde na atualidade.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A partir da reflexão acima apresentada, é possível
concluir que discutir a dependência química na atualidade é discutir a questão
do processo saúde/doença, tanto em termos conceituais, de formação e de
atuação dos profissionais na área de saúde, quanto no que se refere à questão
do tratamento e da promoção da saúde.
Os conceitos de saúde e doença, bem como a questão do uso
de substâncias psicoativas, sofrem uma influência direta do contexto histórico,
cultural e social, o que pode ser verificado analisando-se os principais
aspectos da evolução do homem, desde a Antiguidade até hoje, uma vez que essas
questões sempre permearam a vida humana.
Entretanto, a partir do século XX, são constatadas
transformações no que diz respeito ao processo saúde/doença, sendo que o uso
de substâncias psicoativas assumiu proporções alarmantes, tornando-se um
complexo problema em termos de saúde pública, o qual exige a definição de
intervenções particulares. Porém, falar do uso de drogas não é falar apenas de
uma questão biológica, é falar de um indivíduo integral, para o qual as drogas possuem
uma representação específica.
Portanto, o tratamento da dependência química na atualidade,
bem como as intervenções visando a promoção da saúde e a prevenção do uso de
drogas, devem romper com o modelo cartesiano, apesar das dificuldades ainda
vivenciadas, e assumir que reduzir o fenômeno da drogadição em nossa realidade
é algo que depende da interação entre vários grupos, exigindo mudanças
substanciais na organização social, diminuindo drasticamente as desigualdades
presentes nesse contexto. Também são necessárias mudanças na formação dos
profissionais que lidam com essa questão, além de alterações na forma de
encarar o paciente ou o indivíduo que apresenta maior vulnerabilidade em
relação à droga, encarando os mesmos como seres ativos, que possuem saberes e
fazeres próprios, diretamente implicados no processo saúde/doença.
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