Blog “Dependência e
Co-dependência Química”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
José Baús. Doutor em Psicologia Experimental,
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia, Centro de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina.
RESUMO
Metáforas
estão presentes no discurso de dependentes químicos participantes de grupos de
ajuda mútua. Neste estudo, procurou–se identificar, através da análise do conteúdo
do discurso de quatro participantes de um grupo de ajuda mútua de dependentes
químicos, as metáforas relativas à dependência química e aos processos de
recaída e de recuperação e suas relações com a teoria, implícita ou explícita,
sobre dependência química, adotada por esses participantes. As entrevistas
foram semi-estruturadas, gravadas e transcritas. Os resultados indicaram a
presença de sete metáforas: duas acerca do processo de recaída, uma relativa ao
processo de recuperação, duas acerca da dependência química e duas a respeito
do grupo de ajuda mútua. Evidenciou-se uma congruência entre essas metáforas e
o modelo de dependência química como doença crônica, nos moldes tradicionais do
Alcoólicos Anônimos.
Palavras-chave:
metáfora, dependência química, recaída, recuperação.
INTRODUÇÃO
Metáforas
estão presentes na linguagem cotidiana e, de acordo com Vosniadou e Ortony
(1989), são analogias que nos permitem mapear uma experiência através da
terminologia de uma outra experiência, contribuindo para a compreensão de
tópicos complexos ou novas situações.
Cinco
razões levam Moser (2000) a propor a análise da metáfora como um instrumento
valioso na pesquisa psicológica: 1) elas influenciam o processamento da
informação, nos processos de auto-reflexão, antecipação de ações e comunicação
interpessoal; 2) são uma operacionalização confiável e acessível do
conhecimento tácito; 3) são representações holísticas de compreensão e
conhecimento; 4) as metáforas convencionais são exemplos de ação automatizada
e, de sua análise, pode-se identificar uma determinada teoria implícita; e, por
último, elas refletem processos de compreensão social e cultural.
Nos
grupos de ajuda mútua, cujos participantes apresentam uma história de
dependência química, é bastante freqüente ouvirem-se depoimentos de seus
membros em que determinadas metáforas são utilizadas para descrever os
processos de recuperação e de recaída, o significado da dependência como
doença, e assim por diante. Em estudo anterior, Pick e Baus (1996), através da
análise de verbalizações de dependentes químicos, emitidas em reuniões de um
determinado grupo de ajuda, observaram o uso freqüente das seguintes metáforas:
escalar uma cachoeira, carregar um fardo, reacender uma vela e estar com o pé
na lama. As duas primeiras (cachoeira e fardo) destacam a necessidade da
persistência diante dos obstáculos, o custo da resposta envolvido no processo
de mudança de comportamento e de atitude frente à droga. A terceira (reacender
a vela) se relaciona-se com uma concepção de dependência química como doença
crônica e progressiva, ao enfatizar que, com o primeiro gole, reativa-se o
processo de perda de controle: reacende-se a chama, finalmente, a metáfora do
"pé-na-lama" faz referência a outras analogias: "lixo
humano" e "vegetal", associadas aos significados de perda da
dignidade e da liberdade humanas a que a recaída pode conduzir.
Como
se verificou acima, as metáforas desempenham funções relevantes tanto nos
processos intrapessoais como interpessoais. Dentre as contribuições que o
estudo das metáforas pode trazer para a pesquisa psicológica, Moser (2000)
incluiu aquela de permitir acesso à estrutura e conteúdo das teorias implícitas
subjacentes ao seu emprego automatizado. Por outro lado, é possível, também,
que metáforas apareçam inseridas no discurso do dependente químico quando este
inclui passagens que deixam explícita a teoria sobre a dependência química
professada por ele ou, pelo menos, que é hegemônica no seu grupo de ajuda
mútua.
Este
estudo procurou fazer um levantamento das metáforas relativas à dependência
química, presentes no discurso de participantes de um grupo de ajuda mútua,
quando lhes é solicitado discorrer sobre o processo de recaída e de que forma
estariam relacionadas com sua teoria a respeito do que é dependência química e
o processo de recuperação do dependente químico.
MÉTODO
Participantes:
quatro dependentes químicos em processo de recuperação junto a um grupo de
ajuda mútua há, pelo menos, cinco anos. Os quatro são do sexo masculino: um com
24 anos de idade, outro com 42, o terceiro com 45 e o quarto com 50.
Procedimento
de coleta de dados: entrevista semi-estruturada. Iniciava-se com uma pergunta
"O que é recaída, para ti?". O entrevistador centralizava-se em
questões que permitissem obter informações sobre o conceito de recaída, as
condições que facilitam ou dificultam a recaída, exemplos do cotidiano do dependente.
As entrevistas eram gravadas (gravador de som) mediante consentimento expresso
do participante. Transcritas, eram submetidas à análise de conteúdo,
registrando-se, numa matriz, numa coluna ao lado do texto transcrito, as
sínteses temáticas com respectivos excertos da fala do entrevistado.
Utilizou-se
para dois dos participantes (C e D) a técnica da recorrência, ou seja, após a
análise de conteúdo dos dados obtidos na primeira sessão, retornava-se à
segunda sessão, com o participante, visando ampliar ou retificar suas
informações e pontos devista.
RESULTADOS
Apresenta-se,
em relação a cada um dos quatro participantes, uma síntese, através da qual se
procura identificar as metáforas empregadas e suas possíveis relações com
definições do processo de recaída e sua concepção a respeito da dependência
química. Finalmente, faz-se uma análise global dessas quatro sínteses.
1)
Participante A
Este
participante estabelece uma diferença entre resvalo (deslize ou escorregão) e
recaída. O resvalo consiste numa perda momentânea do autocontrole sobre o uso
da droga que pode levar o indivíduo à recaída, um estado mais prolongado do
abuso de droga e que se caracteriza pela chegada ao "fundo do poço": "(...)
a pessoa faz uso da droga e não consegue mais sair de onde está, do estado que
estava (...)". Três analogias foram usadas para caracterizar a
situação com a qual o dependente químico passa a conviver: desveste-se de sua
humanidade ("vira um vegetal"), passa a conviver com a
impureza ("um lixo humano, ... é quando vai para a lama").
Para
este participante, a compreensão acerca de determinado processo de recaída
pressupõe um conhecimento da história do dependente químico em relação ao uso
indevido de droga ("para entender o que foi essa minha recaída, teria
de entender a minha vida lá atrás ..."): onde encontrar seus colegas
da "ativa" (abusadores ou fornecedores de droga), seu estado
emocional propício ao consumo de droga (frustração ou raiva intensa).
2)
Participante B
A
recaída é vista como uma manifestação (sintoma) de uma doença crônica (a
dependência química), da qual o indivíduo é portador. Mantendo-se abstinente, o
dependente consegue apenas silenciar momentaneamente a sua doença. O principal
fator relacionado com o aparecimento desse sintoma seria a desatenção ou
negligência em desenvolver as habilidades necessárias de enfrentamento diante
das insinuações da droga, ou seja, ceder à tentação do "primeiro
gole"...
Supõe-se
que a convicção manifesta por este participante a respeito do seu envolvimento consciente
no último processo de recaída se deva a seu conhecimento relativamente
profundo acerca da dependência química e do processo de recuperação, dentro de
um modelo de doença crônica (progressiva, incurável e fatal), associado à sua
história vasta e diferenciada em termos de tratamento e de recaídas. Daí
decorreria a auto-imputação de sua responsabilidade pela última recaída.
Acredita-se também que, de uma maior clareza sobre essa "doença" e
sobre o processo de recaída, deva-se deduzir uma maior consciência (clareza?)
diante desse processo, daí surgindo o sentimento exacerbado de culpa diante de
seu fracasso em autocontrolar-se naquela situação. Em outras palavras: o
dependente químico somente deveria ser responsabilizado moralmente por seu
comportamento de abuso de drogas a partir do momento em que, tendo adquirido
clareza a respeito da sua doença, cede à tentação do primeiro gole. Daí a
necessidade de auto monitoramento constante a que se fez referência no primeiro
parágrafo. Caso contrário, ou seja, ceder à tentação do primeiro gole poderá
conduzi-lo novamente ao "fundo do poço", uma situação de desamparo e
abandono. É portanto, a partir da consciência de que é portador de uma doença e
de que todo o cuidado é pouco para evitar que ela se reinstale após o primeiro
gole, que se deve entender como se coloca, para este dependente químico, a
questão da responsabilidade moral, em relação ao uso indevido de drogas. Se,
por um lado, a noção de doença parece eximi-lo da responsabilidade pelos
equívocos cometidos em seu passado em decorrência do uso indevido da droga, por
outro lado, não há como eximir-se de tal responsabilidade, após ter adquirido
consciência de que convive com uma doença e acerca dos cuidados para evitar o
seu recrudescimento.
Duas
metáforas parecem estar asso-ciadas a essa maneira de compreender a dependência
química como doença e o processo de recuperação: a droga como agente/objeto de
sedução e a recuperação como trilhar por um caminho estreito à margem de
precipícios. Observe-se a linguagem com que este participante expressa sua
maneira de encarar a recaída através da metáfora da droga como agente/objeto
sedutor: " (...) Ela vem de várias maneiras. Ela é sutil, suave, e
quando tu deparas prá ti, tu já tá fazendo ... E' incrível! (...)". É
como se estivéssemos diante da metáfora bíblica do Gênesis, em que o Espírito
das Trevas (Satanás), invejoso da felicidade humana no Paraíso, traveste-se de
serpente e oferece o fruto proibido a Eva. Aqui é o próprio fruto proibido que
adquire vida própria, aproximando-se da vítima de maneira sutil, rastejante...
A droga se transforma, ao mesmo tempo, em agente e objeto da sedução. Teriam
Adão e Eva fugido ao convite da serpente, caso tivessem clareza ou estivessem
atentos às conseqüências terríveis (a expulsão do Paraíso) da apropriação
indevida daquele fruto? Seu comportamento impulsivo cegou-os para essas
conseqüências e tiveram de amargar a perda do Paraíso, isto é, de uma vida sem
sofrimentos. A metáfora parece prestar-se a este neste caso: o dependente
químico parece ser seduzido pela busca frenética do prazer a curto prazo,
esquecendo-se ou obscurecendo o impacto posterior dos efeitos colaterais do
abuso da droga.
Uma
segunda metáfora - caminhar numa trilha cercada de precipícios - também aponta
para a necessidade da atenção constante/clareza no entendimento, no processo de
recuperação, tal como o fora assinalado através da metáfora da droga
agente/objeto de sedução. O caminhar próximo a despenha-deiros requer cuidados
redobrados! Qualquer descuido pode conduzir o viajante para o fundo do
precipício. Interessante o paralelo com a metáfora do "fundo do
poço", ou seja, aquela condição de desamparo, depressão, sofrimento
psíquico em que está mergulhado o dependente químico, após um uso prolongado e
exagerado da droga. Esta situação, comumente descrita por muitos dos
participantes em reuniões de Alcoólicos Anônimos, também foi experimen-tada por
estes entrevistados, principalmente antes de iniciar o processo de recuperação
neste grupo de ajuda mútua.
3)
Participante C
Este
entrevistado destaca o absurdo (paradoxo) da dependência química: de um lado, o
dependente químico desejoso de evitar a sua destruição e, de outro, os
empecilhos para abandonar a causa de sua própria destruição, o abuso de droga.
Para ele, a resolução desse impasse está na compreensão da dependência química
como doença crônica. Predomina, pois, em seu discurso, uma concepção de
dependência química como doença progressiva, incurável e fatal, que pode apenas
ser estabilizada através do evitar o primeiro gole: "(...) crônica e
que está estabilizada (...)", daí a metáfora usada por ele, da
ninhada de gatos e a perda do controle após "o primeiro gole":
"(...) tem uma ninhada de gatos" aqui dentro do saco, a coisa mais
linda. Agora vai ali e dá um pontapé pra tu ver o que acontece. Vai ter gato
até na parede trepando "(...). "Evite o primeiro gole pois, se voltar
a usar (...)" embala tudo outra vez. Por outro lado,
trata-se de uma doença que afeta a mente (o cérebro?) do portador, como fica
evidente através do seu uso da metáfora do velho com um pedaço de lajota
massacrando o dedo e o dependente químico massacrando o cérebro "(...). E
eu fazia isso com o meu cérebro, todo dia, e eu sabia, e muitas vezes eu sabia
que droga mata e eu usava justamente por isso, cara." A
compulsão para o uso indevido da droga, considerada aqui como uma verdadeira
escravidão, é exemplificada através da busca incessante de papelotes de droga
"perdidos" na rua e o uso do expediente para justificar-se
socialmente, de que estava colecionando figurinha de chicletes quando alguém o
recriminava por esse comportamento.
Esta
compreensão da dependência química como doença crônica fica mais uma vez
enfatizada quando o entrevistado estabelece uma distinção entre recaída e
"descompensada", relacionando-as com a duração da perda do auto
controle sobre o uso da droga: maior na recaída do que na
"descompensada", ou seja, nesta última, o dependente químico está em
condições de retornar mais rapidamente à situação de controle. O entrevistado
usa a metáfora do alinhamento do carro e do uso de freios, que ilustra muito
bem a noção de perda do controle, para descrever a diferença entre recaída e
"descompensada": "(...) se tu descompensou, tu tem a
possibilidade de retomar, alinhar novamente, centrar de novo, rápido (...) (na
recaída) tu não consegue puxar os freios mais (...)"
"(...) se tu descompensou, tu tem a possibilidade de retomar, alinhar
novamente, centrar de novo rápido (...) se tu recai tu vai te destruindo
infinitamente até que alguém vai te persuadir de novo ou que ...". Esta
metáfora do dependente químico que precisa aprender a "usar o freio",
isto é, autocontrolar-se, é usada também em outra passagem: "(...)... o
meu problema não é usar droga é não saber parar de usar droga. E uma vez
desencadeado esse processo eu parei dessa forma aí como está descrito puxando
os freios e cruzando medicamento (...)".
Destaque-se,
também, o emprego da metáfora do assédio da doença, quando o entrevistado tece
considerações sobre imprevisto como situação de risco de recaída ou
"descompensada". É produzido pela sutileza do assédio da doença da
qual o dependente químico é portador. O assédio ocorre justamente no momento de
maior vulnera-bilidade do dependente. Parece que o entrevistado está
personificando ou animizando a doença, atribuindo-lhe poderes de instigação
(assédio) : "(...). Eu posso te dizer que é aquilo que tu tá mais
vulnerável, que tu não tá prevendo e, por isso mesmo, tu não tá preparado pra
enfrentar aquela situação. É imprevisto que... (...) E imprevisto é
justamente isso ai a sutileza do assédio (...)". A metáfora da
"sutileza da droga" destaca, pois, que a recaída não ocorre
abruptamente; há um processo lento, às vezes até inconsciente (imperceptível?)
de assédio (sedução?): "(...) Inconscientemente tu manipula uma
situação pra justificar e daqui a pouco... Ela não vem assim, ela não aparece
no punho de um cara que aparece com o punho cerrado e abre com droga. Não é
assim que vai acontecer como já aconteceu. Tem toda uma sutileza, tem toda uma
história de ir lá, sabe?. Fazer um passeio e quando tu menos espera, tu tá numa
zona de risco, uma situação comprometedora, né? Quando tu menos espera, tu tá
no local apropriado, com droga e com companheira; aí é muito difícil."
Se
uma das distinções entre recaída e descompensada é feita em relação à dimensão
do controle temporal sobre o processo de uso indevido de drogas, uma segunda
distinção faz referência ao grau de consciência envolvido no processo: a
recaída parece incluir um componente consciente, intencional (daí o uso da
expressão "comportamento comprometido" no caso da recaída), ou seja,
a recaída envolve, na maior parte, uma busca intencional, existindo uma preparação
psicológica para o ato em si, enquanto que a "descompensada" seria um
"acidente de percurso", isto é, muito mais fruto da desa-tenção do
indivíduo. Há uma consciência antecipada da recaída: a situação é planejada
(e.g., estar com dinheiro suficiente para a droga, conhecer o local do tráfico,
ter história como traficante). Admite, porém, que em alguns casos essa
"preparação" se dá até inconscientemente.
A
noção de dependência química como doença tem implicações também para a questão
da responsabilidade moral do dependente químico: a dificuldade de
responsabilizar moralmente o dependente químico por seus atos cometidos sob
influência da droga: "(...) E se a gente tá falando que é uma doença
como é que tu vai criticar isso, se tu tava fora da realidade tu não tava nem
consciente, tu não sabe o que tu tá fazendo ou pelo menos parte disso, né. E
tem situações que a gente sabe que tem um apagamento total (...)".
Quanto
ao processo de recuperação do dependente químico, este passa necessa-riamente
pelo resgate da auto-estima (a dignidade do ser humano) e, para isso, três
condições parecem imprescindíveis: a) identificação com os membros do grupo de
auto-ajuda; b) aceitação do toque físico, sem constrangimento; c) comunicação
compreen-sível entre os membros: "(...) Simplesmente a gente ehhh! tava
numa loucura meio homogênea e aí houve a possibilidade de uma identificação
(...). E foi assim, através de uma sensibilização, de uma identidade, né. Me
identificando com as pessoas que já se encontravam ali. (...) Aí eu permiti que
alguém me tocasse dado a esse voto de confiança. Não me senti coagido, não me
senti eh, como é que eu vou dizer? Assim ... menosprezado nem ridicularizado
como em outras circunstâncias eu já me senti. Ah esse daí entendesse, coisa
pejorativas. Aqui eu me senti bem à vontade (...) a maneira como foi passado,
começou a ser passada as informações fáceis de compreender (...)". Uma
metáfora foi usada para destacar esse processo de afiliação: a metáfora da
absorção do membro pelo grupo: " (...) eles (o grupo de ajuda mútua)
simplesmente me absorveram (...)".
O
processo de recuperação é entendido, ainda, como um processo de
"purificação", de substituição do homem velho pelo homem novo (para
usar uma linguagem bíblica), de retirá-lo da "sarjeta", como fica
subentendido através do uso da metáfora do grupo de ajuda mútua como um
santuário: "(...) eu digo pra ti que é um santuário porque as pessoas
me ergueram, me colocaram em pé e eu permaneci (...)" É um processo
de resgate da dignidade humana, pelo respeito ao dependente químico, não
importando a condição em que este chega ao grupo: "(...) O grupo de
ajuda mútua me devolveu a dignidade (...) Ele me resgatou (...)". A
idéia de resgate da dignidade humana também está presente através do uso de
outra metáfora, tal como a de "tábua da salvação" para o
náufrago: "(...) O grupo de ajuda mútua foi a minha tábua de
salvação (...) ". Por outro lado, a idéia de resgate da dignidade
humana associa-se à idéia do resgate da liberdade humana: "Eu ganhei a
possibilidade de escolha, ou seja, resgatei a minha liberdade". Finalmente,
a liberdade e dignidade humanas alcançadas durante este processo de recuperação
longo e penoso permitem-lhe concluir por sua recusa em retornar à condição
anterior: "(...) onde eu estive, eu nunca mais volto
(...)".
4)
Participante D
Para
este entrevistado, a dependência química é vista como doença orgânica (física)
que se caracteriza pelo uso desregrado de determinada(s) substância(s)
produzindo alteração neuronal e que, por sua vez, é manifestação (sintoma) de
outra doença: "(...) a dependência é uma doença, mas eu entendo que
essa dependência se instalou pelo uso contínuo da droga, mas o que fez esse uso
anormal da substância é uma outra doença. Então, na verdade, aquele uso
desregrado da substância é um sintoma, uma manifestação de uma outra doença
(...). Então a dependência é uma doença que tem origem em outra, falar em
doença é meio complicado, mas que a dependência é doença, é!(...)"
"(...) A dependência é doença porque: o que é a dependência? É uma
alteração química, a nível neuronal, se está alterado, está doente (...)".
Esta
maneira de compreender a dependência química tem implicações para o tratamento
e o processo de recuperação pois, de acordo com esta maneira de entender a dependência
química, subjacente ao comportamento de consumir a droga existe um distúrbio
interno e é este que precisa ser tratado: "(...) então o problema não é
usar a droga e sim o que me faz usar a droga. Usar a droga é uma expressão, é
como se eu tivesse uma pneumonia e estou tossindo – a tosse é a expressão da
pneumonia. O uso da maconha no caso foi a expressão de um transtorno,
distúrbio, de algo que não é normal, de uma anormalidade." Isto fica
evidente na medida em que, mesmo depois de interromper durante muito tempo o
uso da droga, o dependente pode continuar sentindo-se profundamente infeliz.
Daí, o objetivo de um programa de tratamento não deve restringir-se à ruptura
do seu vínculo com a droga, é preciso tratar do distúrbio que leva ao uso indevido
da droga: "(...) recuperações que não valeram a pena, pessoas que
pararam de usar o álcool, principalmente, estão sem o uso da substância mas são
pessoas que apresentam um grau de sofrimento emocional muito grande, são
pessoas sem ação social nenhuma, inertes, cheios de problemas, traumas, medos.
E a vida não muda nada, na verdade eu acho que fica pior, porque a vida se
torna um martírio. Essas são recuperações que não valeram a pena, não se
recuperou nada, você retirou a substância e deixou o doente, (...)".
Além
de suas implicações para o tratamento, esta concepção de dependência química
como doença apresentaria, na opinião deste entrevistado, uma implicação
prática, relacionada com a vantagem de maior facilidade de compreensão por
parte do dependente, a respeito de sua condição. Em outras palavras, a
compreensão de que é portador de uma doença poderia sensibilizá-lo a buscar
ajuda, através de um tratamento: "(...) é uma doença entre aspas; na
verdade, é um transtorno, um distúrbio. É que é mais fácil falar em doença, é
mais direto, assusta mais logo, né?!"
A
fim de exemplificar sua noção de uma doença (a dependência química) que está
relacionada com outra doença, da qual a primeira é apenas um sintoma, este
entrevistado toma a si próprio como modelo, identificando sua neurose ou sua
depressão como fatores associados à sua dependência química: "(...)Tudo
tem me levado a crer que eu sou depressivo (...) acabava bebendo para
esquecer, para ficar tranqüilo, para melhorar, porque o estado emocional fica
muito ruim durante uma crise depressiva (...) uma visão bem atual, muito
organicista, né?(...) assim eu tô num processo depressivo que eu acabava, por
este processo, mudando meus valores, meus conceitos e acabava usando a
substância na busca de uma melhora (...)Porque a dependência uma vez instalada
nunca mais desinstala (...) começam uma série de transtornos, de achar que não
tá certo, com raiva de outros, achar que os outros estão me perseguindo e isso
começa a provocar distúrbios no engajamento social, conflitos, desajustes,
esses são sintomas que antecedem o uso (...) Na verdade são esses
sintomas que eu tô tendo numa crise, no meu caso eu acredito que é
depressão." Hoje, este participante consegue manter sob controle o uso
indevido de drogas, ou seja, em seu processo de recuperação está conseguindo
romper o elo entre sua doença (a neurose, a depressão) e o abuso de droga. Por
outro lado, esse distúrbio básico continua latente, passando a expressá-lo
através de outros sintomas: "(...) só que eu tenho conseguido até agora
evitar o processo de uso da droga, eu descarrego minhas neuroses de outra
maneira (...) São quase sete anos de abstinência onde eu tenho recaídas
dentro da doença sem reinstalar a dependência " .
DISCUSSÃO
Da
análise comparativa das quatro sínteses acima apresentadas, sobressaem-se as
seguintes metáforas: 1) o processo de recaída é considerado como a condição em
que o dependente químico pode retornar à condição de degradação humana,
trans-formando-se num "lixo humano", "lançando-se na lama" ou,
ainda, desvestindo-se da condição humana ao se tornar um "vegetal";
2) o processo de recaída também é semelhante ao processo de dirigir um
automóvel, seja quando o condutor não consegue mais realinhar o veículo quando,
por exemplo, este se desvia para o acostamento; seja quando o freio começa a
falhar; enfatiza-se a noção da perda de controle após o "primeiro
gole"; 3) a dificuldade e a complexidade do processo de recuperação são
comparadas com o caminhar numa trilha à beira de precipícios, em que qualquer
descuido pode propiciar um retorno à condição de degradação anterior; 4) a
dependência química é comparada a uma ninhada de gatos que está presa num saco:
se esta encontrar uma fresta, põe-se em debandada; desta forma, enfatiza-se a
noção de perda de controle por ocasião do "primeiro gole"; 5) a
dependência química e a própria droga são vistas como o agente/objeto
instigador que conduz à recaída; algo similar ao processo de sedução/tentação
sutil, descrito no livro do Gênesis, em que o primeiro casal é seduzido pela
serpente; destaca-se a natureza de doença crônica e a atenção que se deve ter
diante das situações de risco e dos imprevistos; 6) o grupo de ajuda mútua é
considerado como um santuário, pela capacidade que possui de restituir a
dignidade e liberdade humana, resgatando o dependente químico do "fundo do
poço" ou da "sarjeta"; enfatiza-se, pois, a função humanizadora
e libertadora do grupo de ajuda mútua; enfim, uma função de purificação e
libertação do jugo exercido pela droga sobre o indivíduo; 7) o grupo de ajuda
mútua é visto como "a tábua de salvação" ao permitir retornar à vida
aquele que se achava condenado à morte pela droga.
Como
se pode observar, a análise do discurso dos quatro participantes revela com
bastante clareza e de forma explícita uma compreensão sobre a dependência
química e o processo de recaída, o qual se mostrou perfeitamente compatível com
o modelo de doença que circula entre os participantes desse grupo de ajuda
mútua, como verificamos anteriormente (Pick e Baus, 1996), bem como é comum
encontrar no discurso de membros dos Alcoólicos Anônimos ou na literatura
respectiva (Alcoholics Anonymous, 1977). Trata-se de uma concepção de doença
crônica, segundo a qual, através do processo de recuperação, consegue-se apenas
estabilizá-la, ou seja, ao "primeiro gole" pode-se novamente
despertar o "demônio" que estava silenciado momentaneamente. A
análise das metáforas permitiu verificar sua adequação ao modelo de dependência
química como doença crônica: isto ficou nítido nas diversas instâncias desta
análise, seja aquelas relacionadas com o processo de recaída, aquelas relativas
ao processo de recuperação ou ao grupo de ajuda do qual fazem parte esses
integrantes, seja, ainda, aquelas diretamente relativas à dependência química
ou às drogas, em geral.
Este
estudo permite concluir com Moser (2000) a respeito da relevância da análise da
metáfora como instrumento valioso na pesquisa psicológica. Entendemos que este
tipo de análise permite compreender a forma como dependentes químicos se vêem,
como eles relacionam os efeitos da droga com as perturbações psicológicas
vivenciadas e podem esclarecer a respeito da gravidade do quadro de dependência
química dos pacientes.
REFERÊNCIAS
ALCOHOLICS
ANONYMOUS. (1977). Viver Sóbrio. São Paulo: Centro de Distribuição de
Literatura de Alcoólicos Anônimos para o Brasil.
[ Links ]
PICK,
R. E. & BAUS, J. (1996). Análise de conteúdo de verbalizações de dois
participantes de grupo de ajuda mútua de dependentes químicos relativas aos
processos de dependência química e de recuperação. [Resumos] In: Anais da IV
Semana da Pesquisa da UFSC, (p. 262). Florianópolis, SC: Imprensa
Universitária. [ Links ]
VOSNIADOU,
S. & ORTONY, A (eds) (1989). Similarity and analogical reasoning.
New York: Cambridge University Press.
[ Links ]