Blog “Dependência
e Co-dependência Química”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
1 - Renato
Barão Varalda. Promotor
de Justiça e Coordenador Administrativo da Promotoria de Justiça da Infância e
Juventude do Distrito Federal; especialista em Direitos Humanos pela
Universidade de Brasília e University of Essex e mestre em Ciências
Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
2 - Flávia de
Araújo Cordeiro. Psicóloga
do Setor Psicossocial da Promotoria da Infância e Juventude do Distrito Federal;
especialista em Psicologia Infantil pelo Instituto Brasileiro de Psicanálise,
Dinâmica de Grupo e Psicodrama.
INTRODUÇÃO
A
questão do consumo de drogas psicoativas por crianças e adolescentes tem sido debatida
na mídia e na opinião pública, promovendo calorosos embates sobre a melhor ação
a ser dispensada no combate aos seus danos.
Não
existe sociedade sem drogas. Tão antiga quanto a própria humanidade, a tradição
do uso de substâncias capazes de alterar o estado de consciência perde-se no
tempo, tendo sido estas usadas em rituais religiosos, para fins medicinais ou
até para produzir alterações sensoperceptivas que promovessem uma “fuga” da
realidade. No século passado, entretanto, o uso de drogas adquiriu status de
problema social, numa convergência dos discursos médico, jurídico e social do
início do século XX.
Inaugurou-se
uma nova representação sobre o usuário, que transita entre os estigmas da marginalização
e da fraqueza moral. Na juventude, dentre os transtornos mentais mais
frequentes, a dependência de drogas é um dos diagnósticos mais comuns. Trata-se
de distúrbio crônico, recorrente e multifatorial, considerado um problema de
saúde pública em todo mundo, no qual a vulnerabilidade individualmente.
Diariamente,
as Promotorias da Infância e Juventude do Distrito Federal se deparam com
dezenas de pais implorando por medidas que retirem seus filhos dos locais onde
há fácil acesso a substâncias entorpecentes ilícitas, tendo em vista a grave
situação de dependência química que se encontram.
A
Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2003, em seu art. 28, ao não determinar a
pena de restritiva de liberdade aos autores, maiores de 18 anos de idade, no
momento da prática do crime de uso e porte de substância entorpecente, mas
advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e
medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, transferindo
ao Sistema de Saúde a re-educação (tratamento, reabilitação psicossocial) dos
usuários, acarretou, por simetria, a impossibilidade de aplicação da medida
socioeducativa mais gravosa de internação aos adolescentes apreendidos em razão
da prática desse ato infracional, ainda que estejam presentes todos os
requisitos elencados nos arts. 122 e 174 do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA). Também do mesmo modo que o ァ 7º, da Lei nº 11.343/03, o ECA, em seu
inciso VI, do artigo 101, possibilitou a inclusão em programas oficiais ou
comunitários de auxílio, orientação e tratamento a toxicômanos aos adolescentes
dependentes químicos.
No
entanto, a problemática da reabilitação psicossocial dos adolescentes
dependentes químicos deu-se sem o Sistema de Saúde se aparelhasse adequadamente
para receber esse público, alvo de extrema violação de direitos. Embora os
arts. 7º e 11 do ECA prevejam o direito a proteção à vida e à saúde de crianças
e adolescentes, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que lhe
permitam o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de
existência, e garantam o atendimento integral à saúde por intermédio do Sistema
Único de Saúde (SUS), com acesso universal e igualitário às ações para
promoção, proteção e recuperação da saúde aos adolescentes em situação de
vulnerabilidade social, a realidade se mostra caótica.
Nada
obstante o Ministério da Saúde aponte a existência de 600 mil usuários de crack
no Brasil (alguns pesquisadores estimam em um milhão), a Portaria 336/GM, de 19
de fevereiro de 2002 não conseguiu ser integralmente cumprida, ante o número
insuficiente ou até inexistente, em algumas regiões do País, de Centros de
Atenção Psicossocial Infantojuvenil. Ademais, não há como efetivar-se o
tratamento em regime de internação hospitalar, em razão da inexistência (como
exemplo, no Distrito Federal) de equipamentos de saúde públicos destinados a
prestar esse atendimento, o que impossibilita a adequada assistência a crianças
e adolescentes com quadro de dependência química. Nessa mesma situação
encontram-se os adolescentes dependentes químicos que cumprem medidas
socioeducativas pela prática de ato infracional, já que também dependem de
tratamento hospitalar e extra-hospitalar de qualidade oferecido pelo SUS.
Em
que pesem os avanços ocorridos após a Constituição Federal de 1988, as alternativas
de atendimento que se inscrevem no campo das políticas públicas carecem de
propostas concretas e efetivas. Tal situação vem levantando discussões acerca
da possibilidade de a Justiça determinar a internação compulsória mediante a apresentação
de laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, conforme art.
6º, da Lei nº 10216, de 6 de abril de 2001, diante do direito constitucional à liberdade
de locomoção, à intimidade e à intangibilidade do corpo humano, previstos no art.
5º, incisos X e XV, da Magna Carta. Mas não se pode negar que a opção pelo acolhimento
compulsório foi a alternativa do campo jurídico frente ao aumento da demanda e
à frágil rede de assistência. Esse paradoxo sobre a restrição da liberdade da criança
e do adolescente em estado de intoxicação aguda deve ser superado, diante da obrigação
do Estado Democrático de resguardar esse público de situações de risco e de vulnerabilidades
para preservar-lhe integralmente à saúde, e, assim, cumprir a sua função
constitucional de proteção integral. Não se trata de "higienização",
mas de preservação da vida humana digna e de resgate à sociabilidade por meio
de uma ação estatal.
Além
da criança e do adolescente estarem em fase de formação de personalidade, ou seja,
não conhecem totalmente os seus direitos e não reúnem todas as condições de defendê-los,
razões pela quais são detentores de direitos especiais, encontram-se impossibilitados
de responder pelos próprios atos em face das alterações psicofisiológicas
causadas pelo uso intenso de drogas psicoativas. Neste caso, a preservação da
vida e da integridade física e psíquica desses sujeitos de direito deve prevalecer
sobre o direito constitucional de locomoção, intimidade e intangibilidade do corpo
humano se o caso concreto assim se fizer necessário. Ao se considerar o princípio
da dignidade da pessoa humana como critério orientador do processo de ponderação
de valores constitucionalmente determinados, constata-se que o exercício da
melhor opção dos princípios prevalentes no caso concreto (vida, saúde e
integridade física e psíquica) decorre da proteção integral e da dignidade da
criança e do adolescente, ou seja, a situação fática e jurídica em que se
encontram justifica a restrição de uns direitos em prol de outros
preponderantes.
Grande
insatisfação tem gerado na sociedade o retorno constante às ruas de crianças e adolescentes
apreendidos em razão da prática do ato infracional de uso e porte de substância
entorpecente, por terem sido liberados pelo Sistema de Justiça. O Estado que se
diz garantidor de direitos fundamentais não pode fechar os olhos para essa questão,
tampouco tolerar a existência de “locais de traficância” e “cracolândias”, onde
o direito à saúde e à integridade física e psíquica de crianças e adolescentes
são flagrantemente violados. Embora, inicialmente, a disseminação das
substâncias entorpecentes ficasse restringida a essas áreas, atualmente
verifica-se que o consumo está virando uma epidemia, podendo ser flagradas
situações de comércio e consumo de drogas em qualquer lugar e a qualquer hora
do dia. Por exemplo, no Brasil, o crack chegou na década de 1980, restrito a
apenas algumas regiões; hoje, a droga, além de ter substituída a cocaína pela
pasta, é processada inclusive com gasolina e querosene, devastando o organismo
humano, disseminando-se por todo o país, entre adolescentes e crianças.
Intervir
no campo da dependência química na infância e adolescência demanda olhar interdisciplinar
e atuação intersetorial. Somente uma visão ampla do tema permite compreendê-lo
para além das questões legais e jurídicas, alcançando o sujeito e suas vulnerabilidades,
sejam elas individuais, familiares, ambientais, sociais ou econômicas.
Qualificar
essa intervenção requer a reorientação do modelo assistencial vigente, destacando-se
o papel dos serviços de saúde para tratamento de usuários de álcool e drogas
nas ações de prevenção e tratamento. A ausência de políticas públicas do Estado
visando a prevenção ao uso de drogas psicoativas, tratamento e recuperação dos
transtornos relacionados com a dependência, adequados às crianças e aos
adolescentes, fere diretamente os arts. 227 da
Constituição
Federal e 4º do ECA, que delimitou os exatos termos dessa garantia de prioridade
infantojuvenil, ao dispor que essa garantia compreende a primazia de receber proteção
e socorro em quaisquer circunstâncias, precedência de atendimento nos serviços
públicos ou de relevância pública, preferência na formulação e na execução das
políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos nas
áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
O
desafio agora é tornar efetiva a doutrina da proteção integral, o que não se
resume apenas na priorização de recursos orçamentários suficientes para a
implementação de políticas públicas voltadas ao público infantojuvenis, mas
também na correta e eficiente execução desses recursos que, no caso em discussão,
significa implementar rede de tratamento para atender a demanda dessa parcela
da população, inclusive com destinação de leitos hospitalares para os casos de
intoxicação aguda e de dependência química de crianças e de adolescentes,
sobretudo, o crack, altamente prejudicial ao organismo.
Observação: "Dependência química:
vulnerabilidades e desafios", de autoria do Promotor de Justiça Renato
Barão Varalda e da psicóloga do MPDFT Flávia de Araújo Cordeiro, publicado,
como matéria de capa, na Revista Jurídica Consulex, ano XV, nº 352, 15 de setembro de 2011, páginas 24 e 25.
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