Blog “Dependência e
Co-dependência Química”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel. Disponível em
http://dependenciaecodependenciaquimica.blogspot.com.br/
RESUMO
OBJETIVO: Caracterizar a
situação do uso de crack na cidade de São Paulo, assim como o perfil
sociodemográfico de seu usuário.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: Estudo
qualitativo etnográfico com amostra intencional de usuários (n=45) e
ex-usuários de crack (n=17). Os participantes foram recrutados pela técnica de
amostragem em cadeias e responderam a uma entrevista semi-estruturada,
direcionada por questionário, durante os anos de 2004 e 2005. O conjunto de
cada questão e suas respectivas respostas originou relatórios específicos que
foram interpretados individualmente.
ANÁLISE DOS RESULTADOS: O perfil
predominante do usuário de crack foi ser homem, jovem, solteiro, de baixa
classe socioeconômica, baixo nível de escolaridade e sem vínculos empregatícios
formais. O padrão de uso mais freqüentemente citado foi o compulsivo,
caracterizado pelo uso múltiplo de drogas e desenvolvimento de atividades
ilícitas em troca de crack ou dinheiro. Entretanto, identificou-se o uso
controlado que consiste no uso não-diário de crack, mediado por fatores
individuais, desenvolvidos intuitivamente pelo usuário e semelhantes, em
natureza, às estratégias adotadas por ex-usuários para o alcance do estado de
abstinência.
CONCLUSÕES: A cultura do
uso de crack tem sofrido mudanças quanto ao padrão de uso. Embora a maioria dos
usuários o faça de forma compulsiva, observou-se a existência do uso
controlado, que merece maior detalhamento, principalmente quanto às estratégias
adotadas para seu alcance.
DESCRITORES: Cocaína Crack.
Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias, prevenção e controle. Fatores
Socioeconômicos. Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. Pesquisa
Qualitativa. O perfil do usuário de crack, descrito pela primeira vez por Nappo
et al, foi identifi-cado como homem, jovem, de baixa escolaridade e sem
vínculos empregatícios formais. Em função dos efeitos do crack, era raro que os
usuários consumissem-no uma única vez, prolongando o uso até que se esgotassem
física, psíquica ou financeiramente. Em consonância com a realidade
norte-americana, o pensamento dos usuários foca-se no consumo de crack de forma
que sono, alimentação, afeto, senso de responsabilidade e sobrevivência perdem
o significado. Em artigo de Nappo et al, observou-se que em função da sensação
de urgência pela droga e na falta de condições financei-ras, o usuário via-se
forçado a participar de atividades ilícitas (tráfico, roubos e assaltos). Tal
situação piorou com a inclusão das mulheres na cultura aque, ao troca-rem sexo
por crack ou dinheiro, submetiam-se ao risco
INTRODUÇÃO
Consideradas em conjunto, tais atitudes
têm interferido negativamente sobre a saúde e funcionamento social do usuário
de crack de forma a marginalizá-lo, tanto no contexto micro (como nas redes de
uso) quanto macrossocial (comunidades e sistemas de serviço). Embora a situação
seja alarmante, nos Estados Unidos tem-se identificado a existência do uso
controlado de crack, caracterizado como um consumo a longo-prazo, não-diário e
racional, em que o usuário, por meio de estratégias de autocontrole, não tem
permitido que a necessidade pela droga governe sua vida. No Brasil, em
princípio, esse uso controlado não havia sido detectado entre os usuários de
crack. O uso de crack persiste em território brasileiro, apesar dos graves
problemas que causa a quem consome, como marginalidade, cri-minalidade e
efeitos físicos e psíquicos devastadores.
Desta forma, suspeita-se que a cultura
de uso tenha so-frido mudanças desde sua primeira descrição, realizada na
cidade de São Paulo, há 11 anos. Assim, em linhas gerais, o objetivo do
presente estudo foi caracterizar a situação do uso de crack na cidade de São
Paulo, assim como o perfil sociodemográfico de seu usuário.
PROCEDIMENTOS
METODOLÓGICOS
Em abordagem qualitativa, o fenômeno
(objeto de investigação) é identificado a partir dos valores, cren-ças e
representações do indivíduo ou do grupo que os detenha,logo, a amostra
intencional foi composta por casos ricos em informação, ou seja, usuários e
ex-usuários de crack, de ambos os sexos e de idade supe-rior a 18 anos.
Considerou-se ex-usuário ou usuário o
indivíduo que tivesse consumido crack por pelo menos 25 vezes na vida,
evitando-se a inclusão de iniciantes. O ex-usuário deveria estar abstinente por
período de, no mínimo, seis meses antes da seleção. Foram selecionados 65
sujeitos, sendo 48 usuários (U) e 17 ex-usuários (E). Do total, três dos
usuários foram excluídos, por desistência, totalizando 62 depoimen-tos. A
amostra procurou incluir todos os perfis que satisfizessem aos critérios
pré-estabelecidos, até que as informações atingiram o ponto de saturação
teórica, momento em que a seleção foi interrompida.22,23
A coleta de dados deu-se de meados de
2004 a início de 2005. A seleção da amostra foi mediada por informan-tes-chave,
especialistas que facilitaram a aproximação dos investigadores à população-alvo
e forneceram sub-sídios à elaboração do questionário de entrevista.
Em seguida, os investigados foram
recrutados pela técnica de amostragem por cadeias, com ênfase à bola de neve, construindo
15 cadeias de participantes. A maioria das cadeias foi constituída dentro da
comunidade e poucas partiram de centros de tratamento ou outros programas de
intervenção. O principal instrumento de coleta foi a entrevista
semi-estruturada, em profundidade, direcionada por questionário. Algumas
perguntas foram previamente padronizadas para permitir a comparabilidade de
res-postas entre os sujeitos, enquanto outras foram apro-fundadas ou inseridas
durante a entrevista.
Tendo em vista que o foco do trabalho
foi caracterizar o consumo de crack como um todo, assim como o perfil de seu
usuário, o roteiro de entrevista abordou os seguintes tópicos: perfil
sociodemográfico do usuário, forma e padrão de uso (em termos de freqüência e
quantidade), efeitos (positivos e negativos), associação de crack a outras
classes de drogas, atividades desenvolvidas pelo usuário sob a necessidade de
crack e conseqüências de vida decorrentes de seu consumo. Após transcrição,
cada entrevista foi identificada com código alfanumérico significando, pela
ordem: inicial do nome do entrevistado; idade do entrevistado; inicial do sexo
do entrevistado; situação do uso de crack no momento da entrevista, ou seja, se
usuário (U) ou ex-usuário (E). Foi criado programa específico para a tabulação
dos dados, de tal forma que o conjunto de cada questão e suas respectivas
respostas originou relatórios específicos, individualmente avaliados e
interpretados.
As entrevistas, anônimas e com duração
média de 88 min, foram gravadas com a concordância prévia do entrevistado, após
a leitura e aceitação do termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo
foi aprova-do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São
Paulo/Hospital São Paulo.
ANÁLISE
DOS RESULTADOS
A maioria da amostra foi constituída por
homens. Em sua maioria, os participantes eram jovens, solteiros(as), de baixo
nível socioeconômico e de escolaridade, sem vínculos empregatícios formais, tal
como as primeiras descrições da cultura realizadas há quase 11 anos. Quase
todos os entrevistados iniciaram o uso de drogas com álcool e tabaco, tendo
relatado o uso recreacional (na vida) de até 14 substâncias diferentes. Em
função de seu alto poder indutor de dependência, entre tais substâncias, o
crack foi eleito como a droga de pre-ferência.
Quase todos os entrevistados afirmaram
que, dentre as vias de administração da cocaína, os efeitos de crack são os de
início mais rápido, mais breves e mais intensos, dados condizentes com as
diferenças farmacocinéticas entre tais vias. “Porque ela não é uma droga que te
deixa louco por horas, é pá e puf, é uma droga que você deu uma pau-lada ali e
é por minutos (...)” (N19MU).
Os entrevistados sugeriram a divisão dos
efeitos de crack em duas categorias: psíquicos e físicos. Os psíquicos
aconteceriam em duas etapas distintas e sempre na mesma ordem, ou seja,
primeiramente os efeitos positivos (de prazer) sucedidos pelos negativos
(desagradáveis), em conformidade ao já descrito por Nappo et al.17: “Parecia
que eu estava pisando nas nuvens ao lado de Deus. Imagina a situação, usando
droga ao lado de Deus. Parecia o paraíso, que estava tudo bem, que não existia
problemas (...)” (F17FE).
Os efeitos ditos negativos (alucinações;
delírios; fissura – desejo incontrolável de repetir o uso; sensação de
de-pressão e arrependimento) são comumente associados a sensações de
perseguição (paranóia), despertando intenso medo e angústia no usuário e
estimulando-lhe a adoção de comportamentos repetidos e atípicos que aliviem
essa condição: abrir e fechar portas e janelas; apagar e acender luzes; buscar
incessantemente por restos de crack que possam ter caído no ambiente de uso;
entre outros.
Além dos efeitos psíquicos, foram
relatados efeitos físicos, que podem ser subdivididos em motores e viscerais.
Os efeitos motores consistem em contrações musculares involuntárias,
principalmente da face que, acompanhadas por intensa protrusão do globo ocular
garantem marcante expressão de pânico ao usuário de crack, conforme já citado
por Siegel, servindo-lhe como potente identificador social.
“Era incrível, antes de queimar a
primeira pedra, eu falava assim ‘vamos dar o último sorriso porque aca-baram os
sorrisos’, a transformação da fisionomia era incrível, tudo se transformava
(...)” (J30MU). As respostas viscerais foram relatadas como manifes-tações
involuntárias do sistema gastrointestinal, media-das por episódios de
flatulência, diarréias e vômitos, despertadas prontamente com a simples
recordação do crack ou do momento de seu uso. “Só de pensar já dá dor de
barriga, ânsia de vômito (...) já cheguei a buscar a droga vomitando (...) de
tão desesperado pra fumar, perceber que eu tinha evacuado nas calças (...)”
(A28MU)
Diferentemente dos estudos anteriores que
enfatiza-vam o padrão compulsivo como a única modalidade de uso, o presente
trabalho sugere a existência do padrão controlado. Caracterizado como o uso
racional e não-diário de crack, tem gerado implicações individuais e sociais
menos severas, amenizando o estereótipo ante-riormente associado ao usuário de
crack, reconhecido como alguém irresponsável, improdutivo e agressivo.
Dentre os padrões de consumo
identificados, o uso compulsivo ainda foi o mais freqüente, consistindo no
consumo diário de crack e podendo estender-se a até nove dias contínuos.
Geralmente, esse uso só finalizava quando o usuário atingia o esgotamento
físico, psíquico ou financeiro, corroborando estudos anteriores. “Eu nem
cheguei a contar os dias porque era cons-tante (...) muitas vezes emendava o
dia e a noite (...)” (M39ME).
Produto da busca incessante pelos
efeitos positivos, o uso compulsivo de crack caracterizou-se pelo uso múltiplo
de drogas e realização de atividades ilícitas na falta de recursos financeiros
à aquisição de crack, situação que tem contribuído negativamente à condição já
socialmente marginal do usuário.
Atividades ilícitas
Como a fissura gerava uma sensação de
urgência por crack, o usuário esgotava rapidamente seus recursos financeiros,
vendo-se obrigado a realizar atividades fora do mercado legal de trabalho,
comprometendo sua liberdade e integridade física. Os entrevistados relataram a
realização de inúmeras atividades ilícitas, a citar: prostituição, tráfico,
roubos, seqüestros, venda de pertences próprios e familiares e golpes
financeiros de naturezas diversas, nos mesmos moldes que têm sido relatados à
cultura de crack norte-americana.
Por já apresentar inovações quanto à
forma de execução e pelos riscos associados, no presente manuscrito
deta-lhou-se apenas a atividade de prostituição.
Metade das mulheres entrevistadas
relatou já ter se prostituído em troca de crack. Embora essa atividade já
tivesse sido sugerida nos momentos iniciais do apareci-mento da cultura de
crack na cidade de São Paulo, algumas mudanças têm sido observadas. Atualmente,
tem-se identificado a prostituição compulsória, em que homens “emprestam” suas
esposas a traficantes ou a outros usuários em troca de crack, de tal forma que
o período e o número de pedras são combinados no momento da negociação.
“Eu já vi o cara trocar mulher por
crack, o cara falava ‘você fica uma noite com ela e me dá uma quota’ e ela
aceitar e ficar com o cara, era só dar uma quota e a mulher ficava lá (...)”
(L39ME). Além das novas modalidades de prostituição, a ativi-dade tem deixado
de ser de exclusividade feminina. Os homens entrevistados que já trocaram sexo
por crack não se declararam homossexuais, mas quase todos praticavam-na com
outros homens. “Eu estava na rua, de madrugada, louco pra usar crack e aparecia
um cara ‘oh, gatinho, vem aqui que eu quero te chupar’, se tem dinheiro, então
demorou (...)” (R24MU). Entre os homens, a recompensa era frequentemente feita
por dinheiro, mas era possível a troca de sexo diretamente por crack,
principalmente entre colegas de consumo. Não havia um valor fixo para o
programa e tampouco pontos de prostituição.
A prática de sexo oral foi a mais comum,
tendo em vista que segundo os entrevistados, era a modalidade sexual que menos
comprometeria sua sexualidade. Nos Estados Unidos, a prostituição feminina já
foi extensamente relatada e a masculina tem sido recentemente identificada.
Maranda et al sugerem diferentes
etiologias para as duas prostituições, ou seja, enquanto a feminina seria
produto exclusivo da fissura por crack, a masculina pa-rece ser o produto
combinado da fissura ao aumento da libido sexual induzido por crack, distinção
que merece detalhamento em estudos futuros.
Combinação de drogas
O uso múltiplo de drogas é outra
característica mar-cante do atual padrão compulsivo de uso, substituindo
paulatinamente o uso exclusivo, relatado na primeira descrição da cultura de
crack na cidade de São Paulo. Embora presente na literatura, as motivações
subjacentes ao uso múltiplo de drogas sempre per-maneceram pouco esclarecidas.
Assim, conforme os entrevistados do presente estudo, o uso múltiplo sur-giria
como a possibilidade de manipular a intensidade ou a duração dos efeitos de
crack, seja como paliativo aos efeitos negativos ou com fins de intensificar ou
prolongar os efeitos positivos. As drogas associadas mais freqüentemente
citadas foram: álcool, maconha e cloridrato de cocaína.
O álcool tem sido empregado como
paliativo aos efeitos negativos de crack,como ilustrado pela fala a seguir: “(...)
a bebida me acalma, pra eu não pensar mais em fumar eu vou no bar e tomo uma
cerveja (...) se eu não bebo me dá um nervoso, eu ando a cidade todinha até
encontrar um lugar pra eu tomar uma (...)” (J39MU). Conforme os entrevistados,
o consumo de álcool criava ciclos de uso álcool-crack, de forma que uma droga
pas-sava a estimular o uso da outra e vice-versa.
Quanto à ordem de administração, todos
os entrevistados re-lataram ingerir álcool após crack, ordem que, segundo Gossop
et al, diminui os benefícios da associação, pois os efeitos vasoconstritores da
cocaína diminuiriam a absorção do álcool. Em linhas gerais, as ações do álcool
parecem ser mediadas pela formação do cocaetileno, metabótito da cocaína
formado na presença de álcool que, de meia-vida maior e de efeitos semelhantes
à co-caína, aumentaria o período de intoxicação, colocando a saúde do usuário
sob maiores riscos.
A maconha, de acordo com os
entrevistados, era usada como paliativo aos efeitos negativos de crack. Base-ado
em tal efeito, Labigalini Jr. et al apontaram a ado-ção da maconha como
importante estratégia à redução dos danos associados ao uso crônico de crack de
forma a diminuir a fissura e os demais sintomas associados à síndrome de sua
abstinência, o que possibilitaria, em longo prazo, a reintegração sócio-laboral
do usuário. “(...) eu gasto meus 10, 20 contos em crack e depois fumo um
baseado pra baixar a brisa (...) até porque depois você vai dar uma
desacelerada pra chegar em casa com uma cara boa (...)” (JL27MU).
Embora não interfira sobre a intensidade
dos efeitos positivos, a maconha parece prolongar sua duração, seja
administrada simultaneamente (como mesclado) ou após crack (na forma de
baseado). “(...) com maconha prolonga mais, se antes era 5 mi-nutos, com
maconha passa a ser 10 e você fica mais louco (...)” (F26MU)
O uso combinado com o cloridrato de
cocaína (via aspirada) aumenta a intensidade e duração dos efeitos positivos, além
de atuar como paliativo dos efeitos negativos. Seu emprego por usuários de
crack é tão intenso que, conforme Gossop et al, chegaria a ul-trapassar em
freqüência o uso realizado por usuários exclusivos de cloridrato de cocaína. “Eu
usava bastante crack e quando acabava ficava com aquela fissura e a cocaína dá
uma baixada nisso, senão você acaba fazendo besteira (...)” (M22MU).
Outras drogas foram empregadas em
combinação ao crack para intensificar seus efeitos positivos (como a
triexifenidila – TEF) ou como paliativo aos efei-tos negativos (e.g.,
benzodiazepínicos e inalantes). A triexifenidila (TEF), substância
anticolinérgica sintética, é medicamento empregado no tratamento sintomático da
moléstia de Parkinson e no controle dos sintomas extrapiramidais secundários ao
uso de drogas neurolépticas. A TEF tem ação sobre o sistema nervoso central,
possibilitando efeitos psíquicos de importância como euforia e intensificação
das sensações físicas, seja audição, visão ou tato e já constam relatos sobre
seu uso recreativo entre usuários de crack.
Poucos entrevistados relataram o uso
exclusivo de crack, forma de consumo mais prevalente na época da primeira
descrição da cultura na cidade, resultante, principalmente, da apreciação das
sensações isoladas de crack. De baixa prevalência, as motivações do uso
exclusivo, além da anteriormente mencionada, esten-dem-se à descrença de que
outras drogas pudessem, de alguma maneira, potencializar ou amenizar os efeitos
de crack e em virtude do desconhecimento e/ou temor das conseqüências
decorrentes de uma possível associação.
“(...) você não consegue associar crack
a nada, é só ele (...) ele te derruba e te leva para o fundo do poço, mas é
ele, não há outra droga junto (...)” (V45ME). No que concerne às drogas lícitas
(álcool e cigarro), os entrevistados relataram o aumento de sua freqüência e
quantidade de uso depois de empregadas como drogas associadas, podendo, em
longo prazo substituir o crack como droga de preferência.
“Não usava álcool antes, hoje não sei
sair lá do Butantã e vir até o Hospital São Paulo sem parar no bar e tomar uma
cerveja.” (R24MU). Em contrapartida, o uso de outras drogas ilícitas di-minuiu
após iniciado o uso de crack, principalmente maconha e cloridrato de cocaína
(via aspirada), embora fossem empregadas como drogas associadas. Assim, na
falta de recursos financeiros para aquisição de outras drogas, tornou-se clara
a preferência por crack:
“(...) o crack me levou a usar cada vez
mais ele, mas foi inibindo as outras drogas (...) se eu tenho dinheiro pra
comprar crack porque eu vou comprar cocaína se o crack me deixa mais louco?”
(E23ME)
Uso controlado
Embora o padrão compulsivo ainda seja o
mais comum, tem sido identificado o uso controlado de crack, em semelhança ao
já descrito nos Estados Unidos. Embora já observado entre usuários de
cloridrato de cocaína (via aspirada),na cidade de São Paulo, usuários de crack
não conseguiam manter o controle sobre o uso, principal-mente em decorrência da
fissura a ele associada.
O padrão controlado foi caracterizado
pelo uso não-diário de crack e comumente conciliado às atividades sociais
pré-existentes (no que se refere à família, ati-vidades escolares e trabalho),
protegendo o usuário da marginalização. “Acordava cedo todos os dias, ia
trabalhar normalmente, corria aos finais de semana, ia no baile com minha
namorada, quer dizer, eu tinha outras coisas pra ocupar minha cabeça, então sobrava
pouco tempo pra pensar em crack (...)” (JL27MU).
A prática de atividades ilícitas não foi
mencionada por usuários controlados, permitindo-lhes conservar algum senso de
ordem em suas vidas, de tal forma que se manifestaram contra os fatores
farmacológicos e fisiológicos típicos à dependência de crack. “Sujo, cobertor
nas costas, descalço (...) eu falei não, pelo amor de Deus, isso eu não quero.
Jamais vou vender minhas coisas, tirar alguma coisa de mim pra fumar (...)”
(A30MU).
O consumo controlado foi usualmente
identificado entre usuários que já houvessem passado pela fase compul-siva de
uso de crack. A transição da fase compulsiva à controlada ocorreu depois de
anos de consumo, no momento em que o indivíduo conscientizou-se das
im-plicações e concessões feitas em favor da continuidade do uso de crack. O
fato de acreditarem não ter mais estrutura física, psíquica ou moral para
lidarem com as conseqüências decorrentes do próprio consumo, assim como a
observação da vida desastrosa de colegas de uso, foram os principais motivos
para o “despertar” do indivíduo à vida, dirigindo-se ao uso controlado ou até
mesmo à abstinência.
“(...) o tesão que o crack dá, não tem
igual. Eu lamento não poder, quer dizer, poder eu posso, só que tenho que arcar
com as consequências e não estou mais disposto a isso (...) uma vez basta,
errar duas vezes é burrice (...)” (R24MU). O relato de usuários compulsivos
sobre o conhecimento de usuários de crack que mantinham controle sobre a droga
reforçou a existência sobre o uso controlado. “Tem um amigo meu que faz uso
recreativo, não tem problema nenhum, talvez por meia hora fique aquele viciado
tremendo, mas depois volta ao normal (...)” (P29FU).
Embora uma minoria dos entrevistados
tenha reduzido a freqüência e quantidade de uso por intermédio de métodos de
intervenção externos (e.g. tratamento re-ligioso, medicamentoso ou
psicoterápico), os demais alcançaram o padrão controlado com estratégias de
autocontrole ou auto-regulação, individual e intuitiva-mente desenvolvidas. Ou
seja, consistem em estratégias individuais, fatores de proteção internos
desenvolvidos pelo próprio usuário ao se basear nas suas próprias crenças e
valores. Assim, acredita-se que tais estratégias possam ser eficientemente
incorporadas a programas de redução de danos, minimizando as implicações de
vida associadas ao uso compulsivo.
Com efeito, o uso dessas estratégias
também foi relata-do por ex-usuários, à época de consumo, consistindo em um
possível meio de alcance do estado de abstinência e, portanto, em uma relevante
ferramenta para programas de intervenção terapêutica. Dentre as estratégias
adotadas, foram mencionadas:
1. substituição da pedra de crack por
formas “mais leves” de consumo (e.g. pitilho ou mesclado – crack com tabaco e
maconha, respectivamente) ou pelo uso de outras substâncias psicotrópicas. “Eu
estava ficando muito magro, aí passei a usar duas ou três vezes por semana, mas
pra controlar eu compensava com bebida (...)” (M22MU);
2. Afastamento do contexto social de
crack. Trata-se de uma eficiente estratégia intuitiva, pois um dos motivos que
levam à recaída de uso são as “pistas ambientais” a ele associadas, como o
local e amigos de consumo. “(...) porque eu não passo por lugares onde eu
passava, eu evito as pessoas que fazem o uso (...)” (P30MU);
3. Reprogramação de pensamentos e
comportamentos, especialmente nos momentos de ócio. “Agora o crack está tomando
um espaço menor na minha vida, consigo ter momentos de lazer, voltei a ter
contato com o pessoal do skate e agora também estou com uma namoradinha (...)”
(A28MU);
4. Diminuição do emprego das drogas
sabidamente interferentes sobre os efeitos e/ou freqüência e quantidade de uso
de crack, passo que parece ser subseqüente à estratégia 1 no processo de
alcance do uso controlado. “Foi aí que eu diminuí o álcool porque ele dá
aque-la ansiedade de mexer com crack. E se você não beber, não fica
transtornado, com aquela vontade (...)” (J41MU). Embora algumas das estratégias
ao alcance do uso controlado pareçam contraditórias, principalmente no que se
refere aos itens 1 e 4 (por estimularem e redu-zirem, respectivamente, o uso de
outras substâncias interferentes sobre o uso de crack, como o álcool), são
necessários estudos que as descrevam em profundidade e identifiquem uma
possível ordem cronológica entre elas, categorizando-as como passos de um amplo
pro-cesso de recuperação.
CONCLUSÕES
Na cidade de São Paulo, a cultura de uso
de crack tem sofrido consideráveis mudanças ao longo desses 11 anos após sua
primeira descrição. O perfil socio-demográfico do usuário é praticamente o
mesmo e o uso compulsivo é ainda majoritário, com importante comprometimento
físico, moral e social do usuário. O uso exclusivo tem sido paulatinamente
substituído pela associação do crack a outras drogas, caracterizando o usuário,
da cidade de São Paulo, como um politoxicô-mano.
Inicialmente empregado para modular os
efeitos positivos e negativos de crack, o uso múltiplo de drogas tem adicionado
multi-dependências e co-morbidades ao quadro psiquiátrico já existente. Além de
dificultar a identificação da severidade do uso de crack, o uso múltiplo de
drogas dificulta a adesão do paciente a possíveis intervenções terapêuticas e
seu sucesso.
Em paralelo, a sensação de urgência por
crack tem incentivado o usuário à realização de atividades ilícitas,
intensificando o processo de marginalização social e os riscos à sua liberdade
e integridade física, psíquica e moral. Destaca-se a prostituição que, uma vez
estendida aos homens, predispõe a cultura a riscos importantes.
Consideradas em conjunto, as implicações
associadas ao uso de crack consistem em importante problema à saúde pública,
sendo necessário o desenvolvimento de programas de intervenção e políticas
públicas ao seu controle. Em contrapartida, o presente trabalho já indica a
existência do uso controlado de crack, com características distintas do uso
compulsivo. Trata-se do uso mais racional de crack com menores implicações
individuais e sociais. As estratégias intuitivamente desenvolvidas semelhantes
às medidas adotadas por ex-usuários para alcançar o estado de abstinência,
consistem em importantes alternativas à redução de danos e, até mesmo,
interrupção do uso.
Em linhas gerais, ressalta-se que a
informação para redução de danos ou abstinência pode advir do próprio usuário
de crack, detentor do conhecimento, apontando a necessidade de estudos
detalhados a respeito.
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Fontes Adicionais:
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