sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

CARACTERIZAÇÃO DA CULTURA DE CRACK NA CIDADE DE SÃO PAULO: PADRÃO DE USO CONTROLADO



Blog “Dependência e Co-dependência Química”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel. Disponível em http://dependenciaecodependenciaquimica.blogspot.com.br/

RESUMO

OBJETIVO: Caracterizar a situação do uso de crack na cidade de São Paulo, assim como o perfil sociodemográfico de seu usuário.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS: Estudo qualitativo etnográfico com amostra intencional de usuários (n=45) e ex-usuários de crack (n=17). Os participantes foram recrutados pela técnica de amostragem em cadeias e responderam a uma entrevista semi-estruturada, direcionada por questionário, durante os anos de 2004 e 2005. O conjunto de cada questão e suas respectivas respostas originou relatórios específicos que foram interpretados individualmente.

ANÁLISE DOS RESULTADOS: O perfil predominante do usuário de crack foi ser homem, jovem, solteiro, de baixa classe socioeconômica, baixo nível de escolaridade e sem vínculos empregatícios formais. O padrão de uso mais freqüentemente citado foi o compulsivo, caracterizado pelo uso múltiplo de drogas e desenvolvimento de atividades ilícitas em troca de crack ou dinheiro. Entretanto, identificou-se o uso controlado que consiste no uso não-diário de crack, mediado por fatores individuais, desenvolvidos intuitivamente pelo usuário e semelhantes, em natureza, às estratégias adotadas por ex-usuários para o alcance do estado de abstinência.

CONCLUSÕES: A cultura do uso de crack tem sofrido mudanças quanto ao padrão de uso. Embora a maioria dos usuários o faça de forma compulsiva, observou-se a existência do uso controlado, que merece maior detalhamento, principalmente quanto às estratégias adotadas para seu alcance.

DESCRITORES: Cocaína Crack. Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias, prevenção e controle. Fatores Socioeconômicos. Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde. Pesquisa Qualitativa. O perfil do usuário de crack, descrito pela primeira vez por Nappo et al, foi identifi-cado como homem, jovem, de baixa escolaridade e sem vínculos empregatícios formais. Em função dos efeitos do crack, era raro que os usuários consumissem-no uma única vez, prolongando o uso até que se esgotassem física, psíquica ou financeiramente. Em consonância com a realidade norte-americana, o pensamento dos usuários foca-se no consumo de crack de forma que sono, alimentação, afeto, senso de responsabilidade e sobrevivência perdem o significado. Em artigo de Nappo et al, observou-se que em função da sensação de urgência pela droga e na falta de condições financei-ras, o usuário via-se forçado a participar de atividades ilícitas (tráfico, roubos e assaltos). Tal situação piorou com a inclusão das mulheres na cultura aque, ao troca-rem sexo por crack ou dinheiro, submetiam-se ao risco

INTRODUÇÃO

Consideradas em conjunto, tais atitudes têm interferido negativamente sobre a saúde e funcionamento social do usuário de crack de forma a marginalizá-lo, tanto no contexto micro (como nas redes de uso) quanto macrossocial (comunidades e sistemas de serviço). Embora a situação seja alarmante, nos Estados Unidos tem-se identificado a existência do uso controlado de crack, caracterizado como um consumo a longo-prazo, não-diário e racional, em que o usuário, por meio de estratégias de autocontrole, não tem permitido que a necessidade pela droga governe sua vida. No Brasil, em princípio, esse uso controlado não havia sido detectado entre os usuários de crack. O uso de crack persiste em território brasileiro, apesar dos graves problemas que causa a quem consome, como marginalidade, cri-minalidade e efeitos físicos e psíquicos devastadores.
Desta forma, suspeita-se que a cultura de uso tenha so-frido mudanças desde sua primeira descrição, realizada na cidade de São Paulo, há 11 anos. Assim, em linhas gerais, o objetivo do presente estudo foi caracterizar a situação do uso de crack na cidade de São Paulo, assim como o perfil sociodemográfico de seu usuário.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Em abordagem qualitativa, o fenômeno (objeto de investigação) é identificado a partir dos valores, cren-ças e representações do indivíduo ou do grupo que os detenha,logo, a amostra intencional foi composta por casos ricos em informação, ou seja, usuários e ex-usuários de crack, de ambos os sexos e de idade supe-rior a 18 anos.
Considerou-se ex-usuário ou usuário o indivíduo que tivesse consumido crack por pelo menos 25 vezes na vida, evitando-se a inclusão de iniciantes. O ex-usuário deveria estar abstinente por período de, no mínimo, seis meses antes da seleção. Foram selecionados 65 sujeitos, sendo 48 usuários (U) e 17 ex-usuários (E). Do total, três dos usuários foram excluídos, por desistência, totalizando 62 depoimen-tos. A amostra procurou incluir todos os perfis que satisfizessem aos critérios pré-estabelecidos, até que as informações atingiram o ponto de saturação teórica, momento em que a seleção foi interrompida.22,23
A coleta de dados deu-se de meados de 2004 a início de 2005. A seleção da amostra foi mediada por informan-tes-chave, especialistas que facilitaram a aproximação dos investigadores à população-alvo e forneceram sub-sídios à elaboração do questionário de entrevista.
Em seguida, os investigados foram recrutados pela técnica de amostragem por cadeias, com ênfase à bola de neve, construindo 15 cadeias de participantes. A maioria das cadeias foi constituída dentro da comunidade e poucas partiram de centros de tratamento ou outros programas de intervenção. O principal instrumento de coleta foi a entrevista semi-estruturada, em profundidade, direcionada por questionário. Algumas perguntas foram previamente padronizadas para permitir a comparabilidade de res-postas entre os sujeitos, enquanto outras foram apro-fundadas ou inseridas durante a entrevista.
Tendo em vista que o foco do trabalho foi caracterizar o consumo de crack como um todo, assim como o perfil de seu usuário, o roteiro de entrevista abordou os seguintes tópicos: perfil sociodemográfico do usuário, forma e padrão de uso (em termos de freqüência e quantidade), efeitos (positivos e negativos), associação de crack a outras classes de drogas, atividades desenvolvidas pelo usuário sob a necessidade de crack e conseqüências de vida decorrentes de seu consumo. Após transcrição, cada entrevista foi identificada com código alfanumérico significando, pela ordem: inicial do nome do entrevistado; idade do entrevistado; inicial do sexo do entrevistado; situação do uso de crack no momento da entrevista, ou seja, se usuário (U) ou ex-usuário (E). Foi criado programa específico para a tabulação dos dados, de tal forma que o conjunto de cada questão e suas respectivas respostas originou relatórios específicos, individualmente avaliados e interpretados.
As entrevistas, anônimas e com duração média de 88 min, foram gravadas com a concordância prévia do entrevistado, após a leitura e aceitação do termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo foi aprova-do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo/Hospital São Paulo.

ANÁLISE DOS RESULTADOS

A maioria da amostra foi constituída por homens. Em sua maioria, os participantes eram jovens, solteiros(as), de baixo nível socioeconômico e de escolaridade, sem vínculos empregatícios formais, tal como as primeiras descrições da cultura realizadas há quase 11 anos. Quase todos os entrevistados iniciaram o uso de drogas com álcool e tabaco, tendo relatado o uso recreacional (na vida) de até 14 substâncias diferentes. Em função de seu alto poder indutor de dependência, entre tais substâncias, o crack foi eleito como a droga de pre-ferência.
Quase todos os entrevistados afirmaram que, dentre as vias de administração da cocaína, os efeitos de crack são os de início mais rápido, mais breves e mais intensos, dados condizentes com as diferenças farmacocinéticas entre tais vias. “Porque ela não é uma droga que te deixa louco por horas, é pá e puf, é uma droga que você deu uma pau-lada ali e é por minutos (...)” (N19MU).
Os entrevistados sugeriram a divisão dos efeitos de crack em duas categorias: psíquicos e físicos. Os psíquicos aconteceriam em duas etapas distintas e sempre na mesma ordem, ou seja, primeiramente os efeitos positivos (de prazer) sucedidos pelos negativos (desagradáveis), em conformidade ao já descrito por Nappo et al.17: “Parecia que eu estava pisando nas nuvens ao lado de Deus. Imagina a situação, usando droga ao lado de Deus. Parecia o paraíso, que estava tudo bem, que não existia problemas (...)” (F17FE).
Os efeitos ditos negativos (alucinações; delírios; fissura – desejo incontrolável de repetir o uso; sensação de de-pressão e arrependimento) são comumente associados a sensações de perseguição (paranóia), despertando intenso medo e angústia no usuário e estimulando-lhe a adoção de comportamentos repetidos e atípicos que aliviem essa condição: abrir e fechar portas e janelas; apagar e acender luzes; buscar incessantemente por restos de crack que possam ter caído no ambiente de uso; entre outros.
Além dos efeitos psíquicos, foram relatados efeitos físicos, que podem ser subdivididos em motores e viscerais. Os efeitos motores consistem em contrações musculares involuntárias, principalmente da face que, acompanhadas por intensa protrusão do globo ocular garantem marcante expressão de pânico ao usuário de crack, conforme já citado por Siegel, servindo-lhe como potente identificador social.
“Era incrível, antes de queimar a primeira pedra, eu falava assim ‘vamos dar o último sorriso porque aca-baram os sorrisos’, a transformação da fisionomia era incrível, tudo se transformava (...)” (J30MU). As respostas viscerais foram relatadas como manifes-tações involuntárias do sistema gastrointestinal, media-das por episódios de flatulência, diarréias e vômitos, despertadas prontamente com a simples recordação do crack ou do momento de seu uso. “Só de pensar já dá dor de barriga, ânsia de vômito (...) já cheguei a buscar a droga vomitando (...) de tão desesperado pra fumar, perceber que eu tinha evacuado nas calças (...)” (A28MU)
Diferentemente dos estudos anteriores que enfatiza-vam o padrão compulsivo como a única modalidade de uso, o presente trabalho sugere a existência do padrão controlado. Caracterizado como o uso racional e não-diário de crack, tem gerado implicações individuais e sociais menos severas, amenizando o estereótipo ante-riormente associado ao usuário de crack, reconhecido como alguém irresponsável, improdutivo e agressivo.
Dentre os padrões de consumo identificados, o uso compulsivo ainda foi o mais freqüente, consistindo no consumo diário de crack e podendo estender-se a até nove dias contínuos. Geralmente, esse uso só finalizava quando o usuário atingia o esgotamento físico, psíquico ou financeiro, corroborando estudos anteriores. “Eu nem cheguei a contar os dias porque era cons-tante (...) muitas vezes emendava o dia e a noite (...)” (M39ME).
Produto da busca incessante pelos efeitos positivos, o uso compulsivo de crack caracterizou-se pelo uso múltiplo de drogas e realização de atividades ilícitas na falta de recursos financeiros à aquisição de crack, situação que tem contribuído negativamente à condição já socialmente marginal do usuário.

Atividades ilícitas

Como a fissura gerava uma sensação de urgência por crack, o usuário esgotava rapidamente seus recursos financeiros, vendo-se obrigado a realizar atividades fora do mercado legal de trabalho, comprometendo sua liberdade e integridade física. Os entrevistados relataram a realização de inúmeras atividades ilícitas, a citar: prostituição, tráfico, roubos, seqüestros, venda de pertences próprios e familiares e golpes financeiros de naturezas diversas, nos mesmos moldes que têm sido relatados à cultura de crack norte-americana.
Por já apresentar inovações quanto à forma de execução e pelos riscos associados, no presente manuscrito deta-lhou-se apenas a atividade de prostituição.
Metade das mulheres entrevistadas relatou já ter se prostituído em troca de crack. Embora essa atividade já tivesse sido sugerida nos momentos iniciais do apareci-mento da cultura de crack na cidade de São Paulo, algumas mudanças têm sido observadas. Atualmente, tem-se identificado a prostituição compulsória, em que homens “emprestam” suas esposas a traficantes ou a outros usuários em troca de crack, de tal forma que o período e o número de pedras são combinados no momento da negociação.
“Eu já vi o cara trocar mulher por crack, o cara falava ‘você fica uma noite com ela e me dá uma quota’ e ela aceitar e ficar com o cara, era só dar uma quota e a mulher ficava lá (...)” (L39ME). Além das novas modalidades de prostituição, a ativi-dade tem deixado de ser de exclusividade feminina. Os homens entrevistados que já trocaram sexo por crack não se declararam homossexuais, mas quase todos praticavam-na com outros homens. “Eu estava na rua, de madrugada, louco pra usar crack e aparecia um cara ‘oh, gatinho, vem aqui que eu quero te chupar’, se tem dinheiro, então demorou (...)” (R24MU). Entre os homens, a recompensa era frequentemente feita por dinheiro, mas era possível a troca de sexo diretamente por crack, principalmente entre colegas de consumo. Não havia um valor fixo para o programa e tampouco pontos de prostituição.
A prática de sexo oral foi a mais comum, tendo em vista que segundo os entrevistados, era a modalidade sexual que menos comprometeria sua sexualidade. Nos Estados Unidos, a prostituição feminina já foi extensamente relatada e a masculina tem sido recentemente identificada.
Maranda et al sugerem diferentes etiologias para as duas prostituições, ou seja, enquanto a feminina seria produto exclusivo da fissura por crack, a masculina pa-rece ser o produto combinado da fissura ao aumento da libido sexual induzido por crack, distinção que merece detalhamento em estudos futuros.

Combinação de drogas

O uso múltiplo de drogas é outra característica mar-cante do atual padrão compulsivo de uso, substituindo paulatinamente o uso exclusivo, relatado na primeira descrição da cultura de crack na cidade de São Paulo. Embora presente na literatura, as motivações subjacentes ao uso múltiplo de drogas sempre per-maneceram pouco esclarecidas. Assim, conforme os entrevistados do presente estudo, o uso múltiplo sur-giria como a possibilidade de manipular a intensidade ou a duração dos efeitos de crack, seja como paliativo aos efeitos negativos ou com fins de intensificar ou prolongar os efeitos positivos. As drogas associadas mais freqüentemente citadas foram: álcool, maconha e cloridrato de cocaína.
O álcool tem sido empregado como paliativo aos efeitos negativos de crack,como ilustrado pela fala a seguir: “(...) a bebida me acalma, pra eu não pensar mais em fumar eu vou no bar e tomo uma cerveja (...) se eu não bebo me dá um nervoso, eu ando a cidade todinha até encontrar um lugar pra eu tomar uma (...)” (J39MU). Conforme os entrevistados, o consumo de álcool criava ciclos de uso álcool-crack, de forma que uma droga pas-sava a estimular o uso da outra e vice-versa.
Quanto à ordem de administração, todos os entrevistados re-lataram ingerir álcool após crack, ordem que, segundo Gossop et al, diminui os benefícios da associação, pois os efeitos vasoconstritores da cocaína diminuiriam a absorção do álcool. Em linhas gerais, as ações do álcool parecem ser mediadas pela formação do cocaetileno, metabótito da cocaína formado na presença de álcool que, de meia-vida maior e de efeitos semelhantes à co-caína, aumentaria o período de intoxicação, colocando a saúde do usuário sob maiores riscos.
A maconha, de acordo com os entrevistados, era usada como paliativo aos efeitos negativos de crack. Base-ado em tal efeito, Labigalini Jr. et al apontaram a ado-ção da maconha como importante estratégia à redução dos danos associados ao uso crônico de crack de forma a diminuir a fissura e os demais sintomas associados à síndrome de sua abstinência, o que possibilitaria, em longo prazo, a reintegração sócio-laboral do usuário. “(...) eu gasto meus 10, 20 contos em crack e depois fumo um baseado pra baixar a brisa (...) até porque depois você vai dar uma desacelerada pra chegar em casa com uma cara boa (...)” (JL27MU).
Embora não interfira sobre a intensidade dos efeitos positivos, a maconha parece prolongar sua duração, seja administrada simultaneamente (como mesclado) ou após crack (na forma de baseado). “(...) com maconha prolonga mais, se antes era 5 mi-nutos, com maconha passa a ser 10 e você fica mais louco (...)” (F26MU)
O uso combinado com o cloridrato de cocaína (via aspirada) aumenta a intensidade e duração dos efeitos positivos, além de atuar como paliativo dos efeitos negativos. Seu emprego por usuários de crack é tão intenso que, conforme Gossop et al, chegaria a ul-trapassar em freqüência o uso realizado por usuários exclusivos de cloridrato de cocaína. “Eu usava bastante crack e quando acabava ficava com aquela fissura e a cocaína dá uma baixada nisso, senão você acaba fazendo besteira (...)” (M22MU).
Outras drogas foram empregadas em combinação ao crack para intensificar seus efeitos positivos (como a triexifenidila – TEF) ou como paliativo aos efei-tos negativos (e.g., benzodiazepínicos e inalantes). A triexifenidila (TEF), substância anticolinérgica sintética, é medicamento empregado no tratamento sintomático da moléstia de Parkinson e no controle dos sintomas extrapiramidais secundários ao uso de drogas neurolépticas. A TEF tem ação sobre o sistema nervoso central, possibilitando efeitos psíquicos de importância como euforia e intensificação das sensações físicas, seja audição, visão ou tato e já constam relatos sobre seu uso recreativo entre usuários de crack.
Poucos entrevistados relataram o uso exclusivo de crack, forma de consumo mais prevalente na época da primeira descrição da cultura na cidade, resultante, principalmente, da apreciação das sensações isoladas de crack. De baixa prevalência, as motivações do uso exclusivo, além da anteriormente mencionada, esten-dem-se à descrença de que outras drogas pudessem, de alguma maneira, potencializar ou amenizar os efeitos de crack e em virtude do desconhecimento e/ou temor das conseqüências decorrentes de uma possível associação.
“(...) você não consegue associar crack a nada, é só ele (...) ele te derruba e te leva para o fundo do poço, mas é ele, não há outra droga junto (...)” (V45ME). No que concerne às drogas lícitas (álcool e cigarro), os entrevistados relataram o aumento de sua freqüência e quantidade de uso depois de empregadas como drogas associadas, podendo, em longo prazo substituir o crack como droga de preferência.
“Não usava álcool antes, hoje não sei sair lá do Butantã e vir até o Hospital São Paulo sem parar no bar e tomar uma cerveja.” (R24MU). Em contrapartida, o uso de outras drogas ilícitas di-minuiu após iniciado o uso de crack, principalmente maconha e cloridrato de cocaína (via aspirada), embora fossem empregadas como drogas associadas. Assim, na falta de recursos financeiros para aquisição de outras drogas, tornou-se clara a preferência por crack:
“(...) o crack me levou a usar cada vez mais ele, mas foi inibindo as outras drogas (...) se eu tenho dinheiro pra comprar crack porque eu vou comprar cocaína se o crack me deixa mais louco?” (E23ME)

Uso controlado

Embora o padrão compulsivo ainda seja o mais comum, tem sido identificado o uso controlado de crack, em semelhança ao já descrito nos Estados Unidos. Embora já observado entre usuários de cloridrato de cocaína (via aspirada),na cidade de São Paulo, usuários de crack não conseguiam manter o controle sobre o uso, principal-mente em decorrência da fissura a ele associada.
O padrão controlado foi caracterizado pelo uso não-diário de crack e comumente conciliado às atividades sociais pré-existentes (no que se refere à família, ati-vidades escolares e trabalho), protegendo o usuário da marginalização. “Acordava cedo todos os dias, ia trabalhar normalmente, corria aos finais de semana, ia no baile com minha namorada, quer dizer, eu tinha outras coisas pra ocupar minha cabeça, então sobrava pouco tempo pra pensar em crack (...)” (JL27MU).
A prática de atividades ilícitas não foi mencionada por usuários controlados, permitindo-lhes conservar algum senso de ordem em suas vidas, de tal forma que se manifestaram contra os fatores farmacológicos e fisiológicos típicos à dependência de crack. “Sujo, cobertor nas costas, descalço (...) eu falei não, pelo amor de Deus, isso eu não quero. Jamais vou vender minhas coisas, tirar alguma coisa de mim pra fumar (...)” (A30MU).
O consumo controlado foi usualmente identificado entre usuários que já houvessem passado pela fase compul-siva de uso de crack. A transição da fase compulsiva à controlada ocorreu depois de anos de consumo, no momento em que o indivíduo conscientizou-se das im-plicações e concessões feitas em favor da continuidade do uso de crack. O fato de acreditarem não ter mais estrutura física, psíquica ou moral para lidarem com as conseqüências decorrentes do próprio consumo, assim como a observação da vida desastrosa de colegas de uso, foram os principais motivos para o “despertar” do indivíduo à vida, dirigindo-se ao uso controlado ou até mesmo à abstinência.
“(...) o tesão que o crack dá, não tem igual. Eu lamento não poder, quer dizer, poder eu posso, só que tenho que arcar com as consequências e não estou mais disposto a isso (...) uma vez basta, errar duas vezes é burrice (...)” (R24MU). O relato de usuários compulsivos sobre o conhecimento de usuários de crack que mantinham controle sobre a droga reforçou a existência sobre o uso controlado. “Tem um amigo meu que faz uso recreativo, não tem problema nenhum, talvez por meia hora fique aquele viciado tremendo, mas depois volta ao normal (...)” (P29FU).
Embora uma minoria dos entrevistados tenha reduzido a freqüência e quantidade de uso por intermédio de métodos de intervenção externos (e.g. tratamento re-ligioso, medicamentoso ou psicoterápico), os demais alcançaram o padrão controlado com estratégias de autocontrole ou auto-regulação, individual e intuitiva-mente desenvolvidas. Ou seja, consistem em estratégias individuais, fatores de proteção internos desenvolvidos pelo próprio usuário ao se basear nas suas próprias crenças e valores. Assim, acredita-se que tais estratégias possam ser eficientemente incorporadas a programas de redução de danos, minimizando as implicações de vida associadas ao uso compulsivo.
Com efeito, o uso dessas estratégias também foi relata-do por ex-usuários, à época de consumo, consistindo em um possível meio de alcance do estado de abstinência e, portanto, em uma relevante ferramenta para programas de intervenção terapêutica. Dentre as estratégias adotadas, foram mencionadas:

1. substituição da pedra de crack por formas “mais leves” de consumo (e.g. pitilho ou mesclado – crack com tabaco e maconha, respectivamente) ou pelo uso de outras substâncias psicotrópicas. “Eu estava ficando muito magro, aí passei a usar duas ou três vezes por semana, mas pra controlar eu compensava com bebida (...)” (M22MU);

2. Afastamento do contexto social de crack. Trata-se de uma eficiente estratégia intuitiva, pois um dos motivos que levam à recaída de uso são as “pistas ambientais” a ele associadas, como o local e amigos de consumo. “(...) porque eu não passo por lugares onde eu passava, eu evito as pessoas que fazem o uso (...)” (P30MU);

3. Reprogramação de pensamentos e comportamentos, especialmente nos momentos de ócio. “Agora o crack está tomando um espaço menor na minha vida, consigo ter momentos de lazer, voltei a ter contato com o pessoal do skate e agora também estou com uma namoradinha (...)” (A28MU);

4. Diminuição do emprego das drogas sabidamente interferentes sobre os efeitos e/ou freqüência e quantidade de uso de crack, passo que parece ser subseqüente à estratégia 1 no processo de alcance do uso controlado. “Foi aí que eu diminuí o álcool porque ele dá aque-la ansiedade de mexer com crack. E se você não beber, não fica transtornado, com aquela vontade (...)” (J41MU). Embora algumas das estratégias ao alcance do uso controlado pareçam contraditórias, principalmente no que se refere aos itens 1 e 4 (por estimularem e redu-zirem, respectivamente, o uso de outras substâncias interferentes sobre o uso de crack, como o álcool), são necessários estudos que as descrevam em profundidade e identifiquem uma possível ordem cronológica entre elas, categorizando-as como passos de um amplo pro-cesso de recuperação.

CONCLUSÕES

Na cidade de São Paulo, a cultura de uso de crack tem sofrido consideráveis mudanças ao longo desses 11 anos após sua primeira descrição. O perfil socio-demográfico do usuário é praticamente o mesmo e o uso compulsivo é ainda majoritário, com importante comprometimento físico, moral e social do usuário. O uso exclusivo tem sido paulatinamente substituído pela associação do crack a outras drogas, caracterizando o usuário, da cidade de São Paulo, como um politoxicô-mano.
Inicialmente empregado para modular os efeitos positivos e negativos de crack, o uso múltiplo de drogas tem adicionado multi-dependências e co-morbidades ao quadro psiquiátrico já existente. Além de dificultar a identificação da severidade do uso de crack, o uso múltiplo de drogas dificulta a adesão do paciente a possíveis intervenções terapêuticas e seu sucesso.
Em paralelo, a sensação de urgência por crack tem incentivado o usuário à realização de atividades ilícitas, intensificando o processo de marginalização social e os riscos à sua liberdade e integridade física, psíquica e moral. Destaca-se a prostituição que, uma vez estendida aos homens, predispõe a cultura a riscos importantes.
Consideradas em conjunto, as implicações associadas ao uso de crack consistem em importante problema à saúde pública, sendo necessário o desenvolvimento de programas de intervenção e políticas públicas ao seu controle. Em contrapartida, o presente trabalho já indica a existência do uso controlado de crack, com características distintas do uso compulsivo. Trata-se do uso mais racional de crack com menores implicações individuais e sociais. As estratégias intuitivamente desenvolvidas semelhantes às medidas adotadas por ex-usuários para alcançar o estado de abstinência, consistem em importantes alternativas à redução de danos e, até mesmo, interrupção do uso.
Em linhas gerais, ressalta-se que a informação para redução de danos ou abstinência pode advir do próprio usuário de crack, detentor do conhecimento, apontando a necessidade de estudos detalhados a respeito.

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Fontes Adicionais:





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